sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Conto Independente: Triste Sina de Rafael e Valentina



- Sabe que eu não posso viver sem você, Valentina. Não importa a política, vamos juntar nossos pertences e abandonar esta terra desgraçada.
- Não, Rafael. Meu pai morreu nas mãos desses pistoleiros. Eu fiz uma promessa a ele e hei de cumpri-la, mesmo que isso custe a nossa felicidade.
- Mas eu não posso ficar junto de Gabriela. Não saberei viver sem você!
- Muito menos eu sem você! Mas é preciso. Por toda essa gente, por essa terra que meu pai chamou de lar. Você precisa…
- Não! Eu não posso!
- Deve! Agora vá, antes que alguém nos veja juntos.
Rafael viu uma sombra se mover no chão coberto de palha do curral. Imediatamente se virou para janela pela qual entravam os únicos raios de sol do crepúsculo, corados de bronze. Por um instante, seu coração permaneceu estático como a respiração, temendo que alguém os tivesse flagrado.
- Eu vou para a casa de Gabriela e tratarei do casamento com os irmãos dela. Assim como você, Gabriela perdeu o pai. Temo que como primogênita, tome palavra acima de todos naquela fazenda.
Valentina entregou-se em um abraço a Rafael e beijaram-se longamente. Ele sentiu no rosto o calor das mãos dela debaixo das brancas luvas que nunca a viam sem.
- Jamais te esquecerei! – uma lágrima escorreu pelo nariz de Valentina até o peito de Rafael.
- Fica em casa esses dias, até que os pistoleiros sejam dominados. Teu irmão te protegerá. Amanhã, após o comício, nos veremos novamente!
Rafael montou seu cavalo e deixou as terras de falecido Alvarenga a trote rápido e alcançou a cidade antes que o céu se escurecesse por completo. O deserto esfriou rápido. Apeou da montaria e deixou-a descansar em frente ao boteco do Mendonça.
Após meia hora e duas doses de conversa com Mendonça, alguns sujeitos dignos de desconfiança entraram no recinto e começaram a incomodar os presentes. Não que os moradores fossem todos poços de justiça e boa índole, mas a maioria já havia derramado suor pelo tempo que o sol se arrastou pelo céu e agora desejavam apenas uma boa tequila.
Rafael assoviou como um desafio aos recém-chegados e expos o revólver na cintura. Mendonça pegou a espingarda que mantinha sob o balcão e engatilhou.
- Por que não vou procurar encrenca em outro lugar?
Um dos desordeiros se adiantou até Rafael, o examinou e tornou a se afastar.
- Vamos embora. As fêmeas desse lugar tem mais pelo no peito do que eu.
Mendonça praguejou.
- Só você para fazer alguma coisa mesmo, Rafael. Esses ainda pegaram leve, mas há pistoleiros lá fora que não pensariam duas vezes em cravar uma bala entre seus olhos.
- Sei disso Mendonça. E vou fazer. Só estou tomando coragem para abandonar a vida mais fácil e enfrenta-los. Vou me casar com Gabriela e nos livraremos dessa corja.
- É o amor não é? Quando se refere a “vida mais fácil”.
- Sim. Gabriela é uma mulher bonita. Ainda conserva mais traços da Espanha do que o resto de nós. Não a conheço de conversa, mas acho que não me dou bem com a… personalidade dela.
- Sabe como é a vida dessa gente. Apenas finja, e depois deite-se com quem quiser escondido da maioria dos olhares e ninguém vai se importar.
Rafael bebeu mais uma dose e subiu no lombo do cavalo mais uma vez. Dessa vez viajou até a fazenda de outro falecido: Almeida.
Ventania o atingiu até que chegasse ao local, piorando o já não tão elogiável estado de Rafael. No casarão – na verdade um palácio para o padrão do local – de Dona Gabriela, deixou o cavalo no estábulo aos cuidados de um capataz e atravessou os vivazes jardins até a entrada principal. A senhora possuía, apenas no quintal, duas fontes para que as águas evaporassem ao bel prazer do sol mexicano, enquanto a maioria das mulheres da cidade compartilhava água barrenta de um poço. Essa havia sido a primeira impressão sobre Gabriela, e havia três meses que ela não mudara, desde que havia conhecido o falecido pai dela antes de a malária o matar.
Comeu tão bem no jantar como não havia feito em toda a vida.
- Então senhor Rafael, acho que assim podemos concluir o negócio de nosso casamento.
- Sim, Dona Gabriela. Eu pretendia até mesmo tratar de quaisquer detalhes com os senhores seus irmãos.
- Trate disso comigo mesmo. A meus irmãos não lhe cabem decidir com quem eu deva me casar.
- Como desejar, senhorita.
- Dona, e agora deve ser chamado de Don também. Sejamos francos, Rafael. Possui o apoio do povo, e eu a maior fazenda da região. Eu possuo o poder. Poder esse que você quer para acabar com os pistoleiros.
- Poder, Dona Gabriela, que a senhora manifesta em cada vez mais capatazes. Desde minha primeira visita de data anterior a falência de vosso pai, que Santa Maria o tenha, parece que dobrou o número de homens armados nessa fazenda.
- Sim, eu contratei mais alguns homens. Minhas terras são extensas que venho tendo problemas em protege-la toda. Já até perdi algumas cabeças de gado se quer saber.
- Eu não sei se isto é o que o senhor seu pai desejaria…
- O senhor meu pai não tem que desejar nada agora, Don Rafael. A fazenda é minha. E são esses meus capatazes que livrarão o povo que tanto adora dos pistoleiros.
- A senhora teme oposição do povo?
- Deixe-me ser clara. Ou se está totalmente a meu favor, ou é meu inimigo.
Alguns, em especiais os padres, diriam que a união de Gabriela e Rafael havia sido construída pela vontade do Senhor. Outros, os mais descuidados, diriam que a havia sido feita a marteladas sobre uma bigorna.
Rafael e Gabriela não dormiram no mesmo quarto ainda esta noite, aguardariam até depois do comício do dia seguinte para festejarem a vitória. Rafael teve de se contentar em um cômodo simples, porém arejado. Ele precisaria de todo o ar fresco possível…
A noite não lhe foi agradável. Rafael foi assombrado por pesadelos terríveis nos quais lutava por Valentina. Exausto e tomado de suor, Rafael desistiu, deixou que a Virgem Maria carregasse Valentina aos céus, restando-lhe apenas uma de suas luvas brancas em seus dedos. Apavorado, Rafael acordou. Viu diante de si o fantasma de Valentina, em seus habituais trajes brancos, sem, contudo, as luvas que sempre usava. Atingida pela luz do luar que entrava sem permissão pela janela, a imagem de Valentina se desfez aos olhos de Rafael.
Em profunda madrugada, ele deixou soturnamente a fazenda de Gabriela e cavalgou a toda velocidade até a de seu verdadeiro amor. Foi beijado pela luz do alvorecer, fria e pesada, ao chegar à simplória fazenda de Valentina. Alertado pelo pior que poderia ter ocorrido, Rafael viu a porta de entrada escancarada.
Ele invadiu o lugar e avançou pelos cômodos vazios, até que na cozinha viu, tocada de leve pelo presente do sol, uma luva branca e delicada. Rafael ouviu um choro abafado. Seguindo-o, abriu a porta do quartinho de negra cozinheira próximo a ele. Antônio, moleque franzino, irmão único de Valentina, estava amarrado como animal, amordaçado inclusive, jogado ao chão. A arma, herança de seu pai, quebrada a seu lado. Tinha a feição digna de pena, de quem chora à exaustão da alma.
- Eles vieram até aqui, Rafael. Eles a mataram, os pistoleiros.
Antônio não conseguia se controlar.
- Eu tentei nos defender, mas eles eram muitos. Você tem que acreditar em mim, eu tentei defender minha irmã! O líder deles veio até mim. Ele tinha olhos verdes, Rafael, ele era um maldito americano! Ele deixou a luva branca sobre a mesa.
O líder do bando de pistoleiros quebrou a velha arma herança de Alvarenga. Antônio só pode ver os olhos verdes, mais nada além do pano que cobria o rosto do assassino.
Rafael estava dilacerado. Era uma alma morta ocupando um corpo que morreria em breve. Mas um sentimento o animaria pelo tempo pouco que precisaria: vingança. Ele seguiu os rastros dos cascos dos cavalos de volta até a cidade. Ele encontraria e mataria quem tirou Valentina dele para sempre.
A cidade se reunia hora antes do almoço para o comício no pátio central. Centenas se reunião ao redor do palanque de madeira, sobre o qual Dona Gabriela aguardava por seu Don Rafael. Estavam também seus dois irmãos e vários capangas.
Rafael avançou na multidão, na qual alguns o reconheceram, entre eles Mendonça. Perto o bastante do palanque, Rafael tomou consciência dos fatos. Um dentre os capatazes, mas apenas um mesmo, tinha os olhos verdes.
Ou se está totalmente a favor ou contra Gabriela.
Rafael levou a mão até a arma na cintura e engatilhou o revólver.

Desculpas Esfarrapadas e Desafio de Escrita

Podem me criticar, eu sou preguiçoso e não tenho disciplina. Jurei pra mim mesmo que escreveria bastante nessas férias e vocês podem ver o resultado. Ou melhor, não podem ver o resultado.

Pra empurrar a sujeira pra baixo do tapete e pra desencargo de consciência, vou postar um conto independente que escrevi em apenas uma noite como desafio de escrita. Vou aproveitar e sugerir esse novo conteúdo do blog.

O Desafio de Escrita trata-se de um jogo legal, na qual é proposto ao escritor que crie uma história contendo alguns elementos. De um lado, quem sugere os elementos; do outro, o escritor.

Como exemplo, aceitei o seguinte desafio. Deve conter:
  • Um personagem expõe suas emoções;
  • Um personagem morre durante a história;
  • Deve conter uma alma perdida;
  • Deve conter uma luva;
  • A história deve terminar em um comício político.
E disso saiu o conto Triste Sina de Rafael e Valentina. (rimou!)

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Capítulo Nove: O Homem Sem Rosto - Parte 1



Ventava muito forte. Folhas despencavam das árvores e eram carregadas pelo vento. Nuvens negras cobriam todo o céu e formavam uma gigantesca espiral. Dúzias de navios voadores pairavam esparsos no céu. Eu via a casinha de meus avós novamente, com todas as portas e janelas fechadas ameaçando ceder aos fortes ventos. A árvore de galhos grossos estava atrás de mim, desfolhando-se completamente.

Protegi meu rosto do vento e das folhas que ele carregava e avancei custosamente contra a tempestade. Um raio saltou de uma das nuvens, ziguezagueou pelos ares e atingiu um dos navios voadores, que, ao invés de explodir, foi sendo consumido pelo fogo muito lentamente.

Meu pé toca sem firmeza o alpendre da casinha, ouço o som de um tiro atrás de mim e sinto-o percorrer minha espinha como uma aranha furiosa feita de agulhas. Viro-me para trás tomada pela angústia e observo aquela cena novamente, congelada. Vejo meu pai que empunha o sabre tomado de ira e é contido por minha mãe, o soldado em posição de tiro ainda segura o gatilho da arma, e Coronel Woods cujo rosto é tomado pelo desespero. Dessa vez, contudo, Tom não está lá para ser atingido, nem estão meus avós para presenciar o momento de horror.

Lágrimas alcançam meus olhos ardentes. Corro em direção à porta, meus passos escorregam no chão e sinto como se pesassem toneladas. Ataco a porta com garras prevendo sua resistência, porém, ela abre prontamente para minha passagem. Não sinto mais o vento em minha pele, ou as gotas salgadas em meu rosto. O reflexo no chão da alaranjada luz do sol que entra por uma esguia e luxuosa janela atinge meus olhos. Estou em um gabinete de luxo em algum palácio inglês. Vejo Woods de costas para mim. Ele está atrás de um balcão de madeira. Aqueles mesmos dois soldados estão um a cada lado de Anthony. Ele recebe suas ordens de um alto oficial. Um mordomo entra carregando uma bandeja e deixa xícaras sobre o balcão. Avanço alguns passos. Parece que eu não existo, ninguém reage a minha presença. Avanço alguns passos na direção do coronel. Posso enxergar o oficial, ele não tem rosto nem voz, embora eu saiba o que ele diz. Está dando as ordens para prender meu pai, um pirata dos ares.

Anthony Woods bate continência e deixa a sala com seus dois soldados. Não, não é isso. O oficial chamou por um deles, o que atirou e matou Tom. Posso ver bem sua face. Ele retorna e fica sozinho com o alto oficial. O homem sem rosto bebe alguns goles de uma das xícaras e diz poucas palavras ao soldado. Ele dá novas ordens. Mesmo sem poder ouvir sua voz, posso entender cada palavra que ele diz. O homem sem rosto diz para matar meu pai! Woods não pode saber da ordem e o soldado deve achar um modo para que tudo não pareça premeditado. Desgraçado! Ele conseguiu. O soldado deixa a sala, que se escurece.

Ouço a discussão entre meu pai e o Coronel Woods. Olho pela janela e o momento se repete. De repente estou dentro da casa de minha vó e vejo tudo por um ângulo que desconhecia. Minha mãe abraça meu pai por trás e tenta contê-lo.

- Como pôde fazer isso? – meu pai grita enfurecido – Como pode entrar nessa casa e dizer uma coisa dessas?

Vejo o soldado engatilhar a espingarda. O que? Por que ele faz isso? Não era o momento, não era assim que eu me recordava.

- Você não pode fazer tudo o que eles mandarem, Woods! – meu pai berrava, depois cerrava os dentes e o rosto se contorcia de raiva – Seja homem e pense por você mesmo! Olhe o que está fazendo! Condenando seu melhor amigo à morte!

O soldado aponta a arma. Meu estômago revira e sinto ânsia de vômito. Sei o que está por acontecer e não consigo evitar. Meu pai saca o sabre. O soldado solta um discreto riso, encontrou a brecha que tanto procurava. Coronel Woods vira o corpo para trás, o rosto tomado de pânico, e tenta impedir o disparo instantes antes de o soldado puxar o gatilho.

Cubro os olhos com as mãos e escuto somente o baque, que ecoa em minha mente. Caio em um abismo negro atemporal. Por que eu estava vendo aquilo tudo? Eu não queria! Tantas vezes eu desejei apagar o passado da minha memória e seguir uma nova vida, calma o bastante. Mas ao invés de ter meu desejo atendido, ocorreu justamente o oposto. Fui amaldiçoada com aquele livro insiste em me fazer reviver cada momento triste ou obscuro que já vivi.

Sinto a brisa tocar minha pele dos pés aos ombros. Um homem sem rosto. O que esse livro quer me mostrar?

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Diário de Micaela

Vai ser esse mesmo o nome! Estou batizando a novela Diário de Micaela.

O nome tem bem a ver com o item central da trama, o misterioso livro que ela carrega e a transporta para misteriosas lembranças.

Passei só pra avisar mesmo. Nada demais.

Abraços!

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Capítulo Oito: Resgate

Ver o Condestável abaixar a âncora sob a luz do luar me deu um surto de satisfação, rapidamente obliterado pelo medo e ansiedade crescentes de que nossa missão se aproximava.

Quando chegamos a Grays, o Condestável ainda estava lá. Por algum motivo que ainda não sabia, a barcaça nos esperou calmamente, ancorada no porto que fedia a peixes. Não gostei muito disso. De qualquer forma, ela não ficou por lá até o dia após nossa chegada. Agi rapidamente. Enquanto carregavam carvão no navio, nadei furtivamente e abri um rombo milimetricamente calculado no casco, escondido por um saco do combustível sólido. O carvão do depósito todo absorvera água. Não tardou muitos quilômetros para que a constante perda de potência impedisse o barco de continuar a subir o Tâmisa. O capitão, desconfiado, pedira para que averiguassem a situação da caldeira e, para tanto, teriam de cessar as operações.

Eu e maioria da minha tripulação viéramos a bordo de carruagens até Rainham, e avançamos até a barrenta margem do Tâmisa. A cidade estava morta àquela hora da madrugada. O capitão do Condestável e alguns tripulantes desceram do navio e subiram a margem até as ruas a procura de alguém que ajudasse.

A maldita barcaça ainda era guardada por soldados, e eles estavam muito atentos nos seus postos de vigias.

Estevan enviou um sinal para nossos companheiros entocados na mata ou outro lado da praia. O Condestável estava entre nossos dois grupos entocados. Preparei a primeira bala da espingarda e mirei um soldado no convés superior. Intermináveis segundos se seguiram. O que mais me atormentava no momento não era a dúvida sobre minhas habilidades de atiradora, mas sim a merda da arma que tinha uma precisão horrível.

O disparo ecoou pela noite, uma revoada de pássaros medrosos partiu do bosque onde estávamos, uma corda e uma tábua rangeram no Condestável, uma gota de suor pingou em meu olho direito! Tiro no ombro!

Avançamos como cães de rua sobre um filé malpassado na calçada! A tripulação do Condestável não teve tempo de subir a prancha antes que violássemos a sacralidade dos conveses. Uma primeira saraivada de tiros derrubou parte dos nossos, mas parte maior ainda deles! Os sabres foram sacados prematuramente em combate e não tardou para eu perder o meu. Novamente.

Mas lá estava Estevan e seus enormes bíceps para mostrar ao inglês como se usa uma lâmina! Corri para o convés inferior, onde estavam os prisioneiros. Eram ainda mais de que eu imaginava.

- Estevan, dê um jeito na caldeira! Contramestre, liberte os prisioneiros!

O convés inferior era baixo – algo que realmente não me incomodava – quente e úmido. O espaço apesar de amplo era sufocante, e deveria ser mais ainda durante o dia, a pleno funcionamento da caldeira. As vigas de madeira e as paredes já haviam sido completamente mascaradas pela fuligem. Os gases sulfurosos que escapam da caldeira marcavam presença em crostas amareladas corroendo o substrato.

A caldeira era ferro fundido maciço, e eu achava que ela poderia suportar mais de um tiro de canhão. O espanhol espantou o carvão do chão a diversos chutes até achar uma chave de boca de mais de um metro! Ele a fez atravessar diversas engrenagens da transmissão à roda externa. O sistema todo estaria travado e os pistões iriam emperrar se o motor entrasse em funcionamento. Era uma bomba-relógio!

Batista Santos, meu contramestre, o negro do Rio de Janeiro, avançou a passadas largas e rápidas pelo convés. Nunca havia visto um homem correr daquela forma. Com um pé-de-cabra que sempre carregava, ele quebrou os cadeados habilmente que trancavam as celas, verdadeiras gaiolas. Tentei acompanhar o negro procurando Carmensita entre os prisioneiros. Maldição! Não a encontrava de forma alguma! Ela não estava entre os prisioneiros no convés inferior.

- Estevan! – berrar por seu nome era a única alternativa no caos em que estava a multidão – Tem mais prisioneiros? Você viu se tem mais prisioneiros a bordo?

- Talvez tenham mais alguns na cabine do capitão! – ele me respondeu entre tosses e termos em espanhol.

Corremos até o convés superior. Nossos homens ainda enfrentavam a tripulação do Condestável. Os caras eram durões! Durante o ardor do combate, a fuga dos prisioneiros e antes que chegássemos à cabine do capitão, trombetas soaram em meio a disparos de rifles. O capitão do Condestável e a tripulação que haviam deixado o navio retornavam e estavam atirando em nós! Meus homens ficariam acuados e não teriam para onde fugir. Provavelmente o tal Charon não iria nos querer vivos.

- Não vamos conseguir voltar ao Confidente, Micaela! – Estevan segurava meus dois braços com força – Dê a ordem para retornarmos! Rápido ou não teremos chance!

Eu ainda não tinha Carmensita e não sairia dali sem ela. Não teria outra chance para resgatá-la antes que a levassem para a Torre. Não, eu não daria a ordem.

- Encontre Carmensita! Tire ela daqui e a mantenha a salvo, você me entendeu? – ordenei ao espanhol, cujos olhos me fitavam sem entender o que eu dizia. Eu não lhe contara sobre Carmensita. Nem a ele nem a ninguém.

Fomos atacados. Estevan me protegeu do primeiro golpe e derrubou um inimigo. Apoderei-me do sabre do homem sem sorte e comecei a lutar. Não conseguia pensar nem dizer nada! Apenas lutava instintivamente para me proteger, mas não conseguiria fazer isso para sempre.

- Abandonar o navio! – Estevan gritou repetidamente. Ele se afastara de mim e eu nem percebera – Retornem ao Confidente! Salvem suas vidas!

Eu só pude dizer um “Não!”, baixo demais para que qualquer um ouvisse, antes que fosse atacada novamente. Defendia-me dos golpes de sabre e recuava passo a passo para a proa. Era tarde demais, os tripulantes jamais poderiam se salvar agora. O capitão inimigo trazia o inferno consigo e era inevitável.

Meus devaneios remetiam à morte e ao fracasso, e graças a eles não estive atenta para me proteger de mais um golpe. Fui ao chão, ferida no braço. Mas o corte também desatou a tira de couro da bolsa que carregava, levando meu livro para longe de mim! Sim, eu estava carregando ele numa bolsa o tempo todo. Estava.

A bolsa caiu por um poço, uma conexão entre os conveses geralmente fechada com grade e que serve para elevar cargas entre os níveis. Pude ver, caída e atordoada, Estevan levando Carmensita pelo braço. Estavam longe do navio já. O espanhol havia sido bem rápido e entendeu o que eu não soube expressar com palavras.

O capitão retornou ao navio, a maioria dos meus homens estava sendo capturada e eu não seria exceção. Rolei pelas tábuas de madeira e caí para o segundo nível, evacuado. Os ingleses me denunciavam ao seu capitão. Recuperei-me das dores da queda e, segurando firme o ferimento no braço, avancei até a escada que descia para o convés inferior.

Charon demorou a me encontrar. Não porque ele não sabia onde eu estava. Não era isso. Ele só sabia que não tinha pra onde eu ir. Quando ele subiu a bordo, levantou a prancha e selou a barcaça consigo. Ele sabia que eu estava ferida e presa aqui em baixo, local de onde jamais poderia sair, e me atormentava com a angústia de sua demora.

Ele me encontrou caída no chão negro, ao lado da máquina a vapor que movia seu navio, encostada no casco velho, sujo e corroído por enxofre. Sua figura desceu degrau por degrau firme e lentamente. Luz irradiava atrás dele, tornando sua sombra longa e trépida. Seus marujos o seguiam, um deles carregando um lampião.

Era um homem velho, de físico desgastado pelas intempéries de uma vida de sofrimentos. Os olhos eram grandes círculos castanhos-cinzas, e bolsões vermelhos pendiam deles. Várias linhas na testa, ao redor dos olhos e da boca o envelheciam ainda mais. O cabelo que não estava coberto pelo chapéu era desgrenhado, irregulares cachos grandes e negros. Dos finos lábios seguia uma cicatriz esbranquiçada para a bochecha direita, onde havia a marca de uma grande queimadura que começava no pescoço e terminava próximo à têmpora. Barba grossa de vários dias lhe sujava ainda mais a face. Dos ombros pendia uma capa castanha, repleta de rasgos e furos na porção abaixo dos joelhos. Botas negras carregavam a lama da margem do Tâmisa que percorreu. Num largo cinturão de couro carregava duas pistolas distintas e uma faca de vinte centímetros embainhada. No topo do chapéu de aba curvada, uma peça de ouro com o brasão do império britânico conferia-lhe autoridade sobre a vida e a morte de pessoas que sequer conhecia.

- Micaela – a voz parecia vinda de túmulos. – O verme que rastejou até meu navio atrás dos restos para parasitar. Moleques frangotes só se metem comigo uma vez em toda a curta vida deles. Jamais há retorno.

Ele sacou uma das pistolas que carregava no cinturão, engatilhou e apontou para mim, inerte no chão.

- Sabe como são os navios que levam ao inferno as vítimas de Charon? – veio aquela voz lenta e pútrida novamente.

Ergui o rosto e olhei bem para ele, antes de responder-lhe minhas últimas palavras. Levei o braço até a alavanca que ligava o motor.

- A vapor. – Abaixei a alavanca e abracei meu livro.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Ausência Momentânea

Sem delongas, vim apenas informar meus prezados leitores que poderá haver um período um pouco longe sem postagem de novos capítulos. O motivo por trás é a época de provas na universidade (sim, eu estudo!) que está limitando meu tempo.

Mas como o exercício diário é o que faz do homem um atleta, procurarei produzir um conteúdo mínimo todos os dias. É o hábito da escrita que nos capacita a sermos bons escritores.

Despeço-me brevemente. Abraços!