- Sabe que eu não posso viver sem você, Valentina. Não
importa a política, vamos juntar nossos pertences e abandonar esta terra
desgraçada.
- Não, Rafael. Meu pai morreu nas mãos desses pistoleiros.
Eu fiz uma promessa a ele e hei de cumpri-la, mesmo que isso custe a nossa
felicidade.
- Mas eu não posso ficar junto de Gabriela. Não saberei
viver sem você!
- Muito menos eu sem você! Mas é preciso. Por toda essa
gente, por essa terra que meu pai chamou de lar. Você precisa…
- Não! Eu não posso!
- Deve! Agora vá, antes que alguém nos veja juntos.
Rafael viu uma sombra se mover no chão coberto de palha do
curral. Imediatamente se virou para janela pela qual entravam os únicos raios
de sol do crepúsculo, corados de bronze. Por um instante, seu coração
permaneceu estático como a respiração, temendo que alguém os tivesse flagrado.
- Eu vou para a casa de Gabriela e tratarei do casamento com
os irmãos dela. Assim como você, Gabriela perdeu o pai. Temo que como
primogênita, tome palavra acima de todos naquela fazenda.
Valentina entregou-se em um abraço a Rafael e beijaram-se
longamente. Ele sentiu no rosto o calor das mãos dela debaixo das brancas luvas
que nunca a viam sem.
- Jamais te esquecerei! – uma lágrima escorreu pelo nariz de
Valentina até o peito de Rafael.
- Fica em casa esses dias, até que os pistoleiros sejam
dominados. Teu irmão te protegerá. Amanhã, após o comício, nos veremos
novamente!
Rafael montou seu cavalo e deixou as terras de falecido
Alvarenga a trote rápido e alcançou a cidade antes que o céu se escurecesse por
completo. O deserto esfriou rápido. Apeou da montaria e deixou-a descansar em
frente ao boteco do Mendonça.
Após meia hora e duas doses de conversa com Mendonça, alguns
sujeitos dignos de desconfiança entraram no recinto e começaram a incomodar os
presentes. Não que os moradores fossem todos poços de justiça e boa índole, mas
a maioria já havia derramado suor pelo tempo que o sol se arrastou pelo céu e
agora desejavam apenas uma boa tequila.
Rafael assoviou como um desafio aos recém-chegados e expos o
revólver na cintura. Mendonça pegou a espingarda que mantinha sob o balcão e
engatilhou.
- Por que não vou procurar encrenca em outro lugar?
Um dos desordeiros se adiantou até Rafael, o examinou e
tornou a se afastar.
- Vamos embora. As fêmeas desse lugar tem mais pelo no peito
do que eu.
Mendonça praguejou.
- Só você para fazer alguma coisa mesmo, Rafael. Esses ainda
pegaram leve, mas há pistoleiros lá fora que não pensariam duas vezes em cravar
uma bala entre seus olhos.
- Sei disso Mendonça. E vou fazer. Só estou tomando coragem
para abandonar a vida mais fácil e enfrenta-los. Vou me casar com Gabriela e
nos livraremos dessa corja.
- É o amor não é? Quando se refere a “vida mais fácil”.
- Sim. Gabriela é uma mulher bonita. Ainda conserva mais
traços da Espanha do que o resto de nós. Não a conheço de conversa, mas acho
que não me dou bem com a… personalidade dela.
- Sabe como é a vida dessa gente. Apenas finja, e depois
deite-se com quem quiser escondido da maioria dos olhares e ninguém vai se importar.
Rafael bebeu mais uma dose e subiu no lombo do cavalo mais
uma vez. Dessa vez viajou até a fazenda de outro falecido: Almeida.
Ventania o atingiu até que chegasse ao local, piorando o já
não tão elogiável estado de Rafael. No casarão – na verdade um palácio para o
padrão do local – de Dona Gabriela, deixou o cavalo no estábulo aos cuidados de
um capataz e atravessou os vivazes jardins até a entrada principal. A senhora
possuía, apenas no quintal, duas fontes para que as águas evaporassem ao bel prazer
do sol mexicano, enquanto a maioria das mulheres da cidade compartilhava água
barrenta de um poço. Essa havia sido a primeira impressão sobre Gabriela, e
havia três meses que ela não mudara, desde que havia conhecido o falecido pai
dela antes de a malária o matar.
Comeu tão bem no jantar como não havia feito em toda a vida.
- Então senhor Rafael, acho que assim podemos concluir o
negócio de nosso casamento.
- Sim, Dona Gabriela. Eu pretendia até mesmo tratar de
quaisquer detalhes com os senhores seus irmãos.
- Trate disso comigo mesmo. A meus irmãos não lhe cabem
decidir com quem eu deva me casar.
- Como desejar, senhorita.
- Dona, e agora deve ser chamado de Don também. Sejamos
francos, Rafael. Possui o apoio do povo, e eu a maior fazenda da região. Eu
possuo o poder. Poder esse que você quer para acabar com os pistoleiros.
- Poder, Dona Gabriela, que a senhora manifesta em cada vez
mais capatazes. Desde minha primeira visita de data anterior a falência de
vosso pai, que Santa Maria o tenha, parece que dobrou o número de homens
armados nessa fazenda.
- Sim, eu contratei mais alguns homens. Minhas terras são
extensas que venho tendo problemas em protege-la toda. Já até perdi algumas
cabeças de gado se quer saber.
- Eu não sei se isto é o que o senhor seu pai desejaria…
- O senhor meu pai não tem que desejar nada agora, Don
Rafael. A fazenda é minha. E são esses meus capatazes que livrarão o povo que
tanto adora dos pistoleiros.
- A senhora teme oposição do povo?
- Deixe-me ser clara. Ou se está totalmente a meu favor, ou
é meu inimigo.
Alguns, em especiais os padres, diriam que a união de
Gabriela e Rafael havia sido construída pela vontade do Senhor. Outros, os mais
descuidados, diriam que a havia sido feita a marteladas sobre uma bigorna.
Rafael e Gabriela não dormiram no mesmo quarto ainda esta
noite, aguardariam até depois do comício do dia seguinte para festejarem a
vitória. Rafael teve de se contentar em um cômodo simples, porém arejado. Ele
precisaria de todo o ar fresco possível…
A noite não lhe foi agradável. Rafael foi assombrado por
pesadelos terríveis nos quais lutava por Valentina. Exausto e tomado de suor,
Rafael desistiu, deixou que a Virgem Maria carregasse Valentina aos céus,
restando-lhe apenas uma de suas luvas brancas em seus dedos. Apavorado, Rafael
acordou. Viu diante de si o fantasma de Valentina, em seus habituais trajes
brancos, sem, contudo, as luvas que sempre usava. Atingida pela luz do luar que
entrava sem permissão pela janela, a imagem de Valentina se desfez aos olhos de
Rafael.
Em profunda madrugada, ele deixou soturnamente a fazenda de
Gabriela e cavalgou a toda velocidade até a de seu verdadeiro amor. Foi beijado
pela luz do alvorecer, fria e pesada, ao chegar à simplória fazenda de
Valentina. Alertado pelo pior que poderia ter ocorrido, Rafael viu a porta de
entrada escancarada.
Ele invadiu o lugar e avançou pelos cômodos vazios, até que
na cozinha viu, tocada de leve pelo presente do sol, uma luva branca e
delicada. Rafael ouviu um choro abafado. Seguindo-o, abriu a porta do quartinho
de negra cozinheira próximo a ele. Antônio, moleque franzino, irmão único de
Valentina, estava amarrado como animal, amordaçado inclusive, jogado ao chão. A
arma, herança de seu pai, quebrada a seu lado. Tinha a feição digna de pena, de
quem chora à exaustão da alma.
- Eles vieram até aqui, Rafael. Eles a mataram, os
pistoleiros.
Antônio não conseguia se controlar.
- Eu tentei nos defender, mas eles eram muitos. Você tem que
acreditar em mim, eu tentei defender minha irmã! O líder deles veio até mim.
Ele tinha olhos verdes, Rafael, ele era um maldito americano! Ele deixou a luva
branca sobre a mesa.
O líder do bando de pistoleiros quebrou a velha arma herança
de Alvarenga. Antônio só pode ver os olhos verdes, mais nada além do pano que
cobria o rosto do assassino.
Rafael estava dilacerado. Era uma alma morta ocupando um
corpo que morreria em breve. Mas um sentimento o animaria pelo tempo pouco que
precisaria: vingança. Ele seguiu os rastros dos cascos dos cavalos de volta até
a cidade. Ele encontraria e mataria quem tirou Valentina dele para sempre.
A cidade se reunia hora antes do almoço para o comício no
pátio central. Centenas se reunião ao redor do palanque de madeira, sobre o
qual Dona Gabriela aguardava por seu Don Rafael. Estavam também seus dois
irmãos e vários capangas.
Rafael avançou na multidão, na qual alguns o reconheceram,
entre eles Mendonça. Perto o bastante do palanque, Rafael tomou consciência dos
fatos. Um dentre os capatazes, mas apenas um mesmo, tinha os olhos verdes.
Ou se está totalmente a favor ou contra Gabriela.
Rafael levou a mão até a arma na cintura e engatilhou o
revólver.