terça-feira, 30 de outubro de 2012

Diário de Micaela

Vai ser esse mesmo o nome! Estou batizando a novela Diário de Micaela.

O nome tem bem a ver com o item central da trama, o misterioso livro que ela carrega e a transporta para misteriosas lembranças.

Passei só pra avisar mesmo. Nada demais.

Abraços!

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Capítulo Oito: Resgate

Ver o Condestável abaixar a âncora sob a luz do luar me deu um surto de satisfação, rapidamente obliterado pelo medo e ansiedade crescentes de que nossa missão se aproximava.

Quando chegamos a Grays, o Condestável ainda estava lá. Por algum motivo que ainda não sabia, a barcaça nos esperou calmamente, ancorada no porto que fedia a peixes. Não gostei muito disso. De qualquer forma, ela não ficou por lá até o dia após nossa chegada. Agi rapidamente. Enquanto carregavam carvão no navio, nadei furtivamente e abri um rombo milimetricamente calculado no casco, escondido por um saco do combustível sólido. O carvão do depósito todo absorvera água. Não tardou muitos quilômetros para que a constante perda de potência impedisse o barco de continuar a subir o Tâmisa. O capitão, desconfiado, pedira para que averiguassem a situação da caldeira e, para tanto, teriam de cessar as operações.

Eu e maioria da minha tripulação viéramos a bordo de carruagens até Rainham, e avançamos até a barrenta margem do Tâmisa. A cidade estava morta àquela hora da madrugada. O capitão do Condestável e alguns tripulantes desceram do navio e subiram a margem até as ruas a procura de alguém que ajudasse.

A maldita barcaça ainda era guardada por soldados, e eles estavam muito atentos nos seus postos de vigias.

Estevan enviou um sinal para nossos companheiros entocados na mata ou outro lado da praia. O Condestável estava entre nossos dois grupos entocados. Preparei a primeira bala da espingarda e mirei um soldado no convés superior. Intermináveis segundos se seguiram. O que mais me atormentava no momento não era a dúvida sobre minhas habilidades de atiradora, mas sim a merda da arma que tinha uma precisão horrível.

O disparo ecoou pela noite, uma revoada de pássaros medrosos partiu do bosque onde estávamos, uma corda e uma tábua rangeram no Condestável, uma gota de suor pingou em meu olho direito! Tiro no ombro!

Avançamos como cães de rua sobre um filé malpassado na calçada! A tripulação do Condestável não teve tempo de subir a prancha antes que violássemos a sacralidade dos conveses. Uma primeira saraivada de tiros derrubou parte dos nossos, mas parte maior ainda deles! Os sabres foram sacados prematuramente em combate e não tardou para eu perder o meu. Novamente.

Mas lá estava Estevan e seus enormes bíceps para mostrar ao inglês como se usa uma lâmina! Corri para o convés inferior, onde estavam os prisioneiros. Eram ainda mais de que eu imaginava.

- Estevan, dê um jeito na caldeira! Contramestre, liberte os prisioneiros!

O convés inferior era baixo – algo que realmente não me incomodava – quente e úmido. O espaço apesar de amplo era sufocante, e deveria ser mais ainda durante o dia, a pleno funcionamento da caldeira. As vigas de madeira e as paredes já haviam sido completamente mascaradas pela fuligem. Os gases sulfurosos que escapam da caldeira marcavam presença em crostas amareladas corroendo o substrato.

A caldeira era ferro fundido maciço, e eu achava que ela poderia suportar mais de um tiro de canhão. O espanhol espantou o carvão do chão a diversos chutes até achar uma chave de boca de mais de um metro! Ele a fez atravessar diversas engrenagens da transmissão à roda externa. O sistema todo estaria travado e os pistões iriam emperrar se o motor entrasse em funcionamento. Era uma bomba-relógio!

Batista Santos, meu contramestre, o negro do Rio de Janeiro, avançou a passadas largas e rápidas pelo convés. Nunca havia visto um homem correr daquela forma. Com um pé-de-cabra que sempre carregava, ele quebrou os cadeados habilmente que trancavam as celas, verdadeiras gaiolas. Tentei acompanhar o negro procurando Carmensita entre os prisioneiros. Maldição! Não a encontrava de forma alguma! Ela não estava entre os prisioneiros no convés inferior.

- Estevan! – berrar por seu nome era a única alternativa no caos em que estava a multidão – Tem mais prisioneiros? Você viu se tem mais prisioneiros a bordo?

- Talvez tenham mais alguns na cabine do capitão! – ele me respondeu entre tosses e termos em espanhol.

Corremos até o convés superior. Nossos homens ainda enfrentavam a tripulação do Condestável. Os caras eram durões! Durante o ardor do combate, a fuga dos prisioneiros e antes que chegássemos à cabine do capitão, trombetas soaram em meio a disparos de rifles. O capitão do Condestável e a tripulação que haviam deixado o navio retornavam e estavam atirando em nós! Meus homens ficariam acuados e não teriam para onde fugir. Provavelmente o tal Charon não iria nos querer vivos.

- Não vamos conseguir voltar ao Confidente, Micaela! – Estevan segurava meus dois braços com força – Dê a ordem para retornarmos! Rápido ou não teremos chance!

Eu ainda não tinha Carmensita e não sairia dali sem ela. Não teria outra chance para resgatá-la antes que a levassem para a Torre. Não, eu não daria a ordem.

- Encontre Carmensita! Tire ela daqui e a mantenha a salvo, você me entendeu? – ordenei ao espanhol, cujos olhos me fitavam sem entender o que eu dizia. Eu não lhe contara sobre Carmensita. Nem a ele nem a ninguém.

Fomos atacados. Estevan me protegeu do primeiro golpe e derrubou um inimigo. Apoderei-me do sabre do homem sem sorte e comecei a lutar. Não conseguia pensar nem dizer nada! Apenas lutava instintivamente para me proteger, mas não conseguiria fazer isso para sempre.

- Abandonar o navio! – Estevan gritou repetidamente. Ele se afastara de mim e eu nem percebera – Retornem ao Confidente! Salvem suas vidas!

Eu só pude dizer um “Não!”, baixo demais para que qualquer um ouvisse, antes que fosse atacada novamente. Defendia-me dos golpes de sabre e recuava passo a passo para a proa. Era tarde demais, os tripulantes jamais poderiam se salvar agora. O capitão inimigo trazia o inferno consigo e era inevitável.

Meus devaneios remetiam à morte e ao fracasso, e graças a eles não estive atenta para me proteger de mais um golpe. Fui ao chão, ferida no braço. Mas o corte também desatou a tira de couro da bolsa que carregava, levando meu livro para longe de mim! Sim, eu estava carregando ele numa bolsa o tempo todo. Estava.

A bolsa caiu por um poço, uma conexão entre os conveses geralmente fechada com grade e que serve para elevar cargas entre os níveis. Pude ver, caída e atordoada, Estevan levando Carmensita pelo braço. Estavam longe do navio já. O espanhol havia sido bem rápido e entendeu o que eu não soube expressar com palavras.

O capitão retornou ao navio, a maioria dos meus homens estava sendo capturada e eu não seria exceção. Rolei pelas tábuas de madeira e caí para o segundo nível, evacuado. Os ingleses me denunciavam ao seu capitão. Recuperei-me das dores da queda e, segurando firme o ferimento no braço, avancei até a escada que descia para o convés inferior.

Charon demorou a me encontrar. Não porque ele não sabia onde eu estava. Não era isso. Ele só sabia que não tinha pra onde eu ir. Quando ele subiu a bordo, levantou a prancha e selou a barcaça consigo. Ele sabia que eu estava ferida e presa aqui em baixo, local de onde jamais poderia sair, e me atormentava com a angústia de sua demora.

Ele me encontrou caída no chão negro, ao lado da máquina a vapor que movia seu navio, encostada no casco velho, sujo e corroído por enxofre. Sua figura desceu degrau por degrau firme e lentamente. Luz irradiava atrás dele, tornando sua sombra longa e trépida. Seus marujos o seguiam, um deles carregando um lampião.

Era um homem velho, de físico desgastado pelas intempéries de uma vida de sofrimentos. Os olhos eram grandes círculos castanhos-cinzas, e bolsões vermelhos pendiam deles. Várias linhas na testa, ao redor dos olhos e da boca o envelheciam ainda mais. O cabelo que não estava coberto pelo chapéu era desgrenhado, irregulares cachos grandes e negros. Dos finos lábios seguia uma cicatriz esbranquiçada para a bochecha direita, onde havia a marca de uma grande queimadura que começava no pescoço e terminava próximo à têmpora. Barba grossa de vários dias lhe sujava ainda mais a face. Dos ombros pendia uma capa castanha, repleta de rasgos e furos na porção abaixo dos joelhos. Botas negras carregavam a lama da margem do Tâmisa que percorreu. Num largo cinturão de couro carregava duas pistolas distintas e uma faca de vinte centímetros embainhada. No topo do chapéu de aba curvada, uma peça de ouro com o brasão do império britânico conferia-lhe autoridade sobre a vida e a morte de pessoas que sequer conhecia.

- Micaela – a voz parecia vinda de túmulos. – O verme que rastejou até meu navio atrás dos restos para parasitar. Moleques frangotes só se metem comigo uma vez em toda a curta vida deles. Jamais há retorno.

Ele sacou uma das pistolas que carregava no cinturão, engatilhou e apontou para mim, inerte no chão.

- Sabe como são os navios que levam ao inferno as vítimas de Charon? – veio aquela voz lenta e pútrida novamente.

Ergui o rosto e olhei bem para ele, antes de responder-lhe minhas últimas palavras. Levei o braço até a alavanca que ligava o motor.

- A vapor. – Abaixei a alavanca e abracei meu livro.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Ausência Momentânea

Sem delongas, vim apenas informar meus prezados leitores que poderá haver um período um pouco longe sem postagem de novos capítulos. O motivo por trás é a época de provas na universidade (sim, eu estudo!) que está limitando meu tempo.

Mas como o exercício diário é o que faz do homem um atleta, procurarei produzir um conteúdo mínimo todos os dias. É o hábito da escrita que nos capacita a sermos bons escritores.

Despeço-me brevemente. Abraços!

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Capítulo Sete: Mergulho em Pesadelos

Pendurei um casaco em um gancho na minha cabine. Coloquei um par de botas sob ele. Calças, meias, luvas, tudo dobrado sobre um baú. O Confidente balançava e rangia periodicamente ao movimento da maré. Trovejava havia horas naquela noite, mas nenhuma gota de água havia caído ainda. Aguardei por uma tempestade que só viria horas depois.

Sentei-me abruptamente na cadeira. Meu livro estava em posição bem a minha frente. Trancara a porta previamente. Afastei a garrafa de vinho e a caneca e aproximei o lampião de mim sobre a mesa. Havia um bom tempo que eu não lia aquele livro.

Respirei profundamente algumas vezes. Minhas mãos suavam, estavam geladas. Meu coração acelerou, martelava. Eu sabia o que podia esperar daquilo tudo. Sabia o que sentia. Medo. Poderiam questionar minha sanidade em insistir com aquela tormenta, mas era preciso. Eu buscava respostas.

Lenta e hesitantemente, levei a mão até a uma das bordas do livro. Abri.

Trevas. Tudo deixou de existir. Eu deixei de existir. Tudo era atemporal. Mergulhei em um rodamoinho de sons, cheiros e lembranças fora de época e lugar.

***

Minhas mãos suavam, minha respiração estava ofegante. Podia sentir o coração palpitando no peito. Meus pensamentos estavam em caos, mas eu sorria ainda assim. Eu queria, mas não conseguia olhar para o rosto de Tom.

Estávamos à beira do riacho pedregoso, próximos da ponte de madeira. O vento batia no meu rosto e parecia que estava ainda mais frio. Algumas aves voaram alguns metros acima de nossas cabeças e se enfiaram entre os pinheiros na outra margem.

Tom atirou sua última pedrinha ao riacho. Olhei para suas mãos. Estavam inquietas, buscando algo para segurar. Já haviam se passados quinze minutos desde que ele me trouxe até aqui embaixo. Falava lenta e nervosamente sobre alguns assuntos com pouca profundidade. Tentava chegar ao ponto, porém não conseguia.

Eu sabia o que ele queria dizer, o que queria fazer me trazendo ali. Éramos crianças de apenas sete anos. Tom tinha sido meu amigo desde que se mudou com sua mãe para ser nossos vizinhos. Já se fazia dois anos isso. 

Me comichava por dentro. Queria ouvir de Tom que gostava de mim e queria dizer a ele que gostava dele também! Ele fora meu primeiro amigo. Era o único que me seguia nas minhas aventuras no bosque de pinheiros mesmo que isso lhe custasse voltar para casa todo arranhado dos galhos das árvores. Eu vira, escondida, ele apanhar de Brad e sua turma quando me insultaram e ele me defendera. Eu fora a única pessoa a quem ele mostrara a coleção de aranhas, escorpiões e cobras que havia sido de seu pai. E agora estávamos ali, sentados na relva à margem do riacho rochoso.

Ouvi um carro se aproximar e parar lá em cima da colina. Não me importei na hora quem estaria visitando meus avós ou meus pais. Eu só queria que Tom me dissesse logo que gostava de mim!

O céu estava completamente nublado. Eu gostava assim. Os ventos se tornaram mais intensos e folhas secas nos atingiram. Risos. Tom me olhou nervosamente. Quando nossos olhos se encontraram, ele congelou. Os cabelos loiros dele vinham na minha direção, estavam loucos para tocar os meus. Seus olhos azuis brilharam. Percebi sua pupila dilatar. Nossos dois corpos permaneceram estáticos por algum tempo, cessando a conversando que não havia tido importância alguma até aquele momento. Estávamos bobos, olhando um pro outro.

- Micaela, eu – lembro-me perfeitamente de sua voz um pouco ríspida.

Tom nunca terminou a frase. Gritos de uma discussão vindos da casa no alto da colina nos assustaram.

Os ventos se tornaram mais fortes e ouvi trovoadas que nunca ocorreram. Ele estava começando de novo. Era mais do que uma lembrança. Eu revivia aquele momento. Tive aquela sensação de quando percebemos que estamos sonhando, só que muito mais intensa. Mas eu não acordava como acontece normalmente. Eu sabia o que ia acontecer. Eu queria desesperadamente acordar, mas não conseguia! Eu não queria ver aquilo tudo de novo, não! Aquele universo se tornava instável, quebradiço. As imagens que eu via deixavam rastro, os sons ecoavam.

Da margem do riacho conseguíamos ver apenas um pedaço do telhado da casinha. Vimos dois vultos saindo pelo alpendre, discutindo violentamente. Tom disse que ia ver o que estava acontecendo.

- Tom, não! Não vá! Tom! – eu tentava impedi-lo, mas era incapaz.

Iria acontecer tudo novamente e eu não conseguia impedir. Corri atrás de Tom subindo a colina, gritando o nome dele e pedindo para esperar. Eu não havia feito isso, nada iria mudar.

Chegamos perto do topo. Meu pai discutia com o Coronel Woods, gritava a plenos pulmões, enquanto minha mãe tentava o conter pelas costas. Woods recuou para próximo do jipe do exército. Os dois soldados que estavam lá se colocaram em prontidão, alertas aos movimentos do meu pai. Um deles engatilhara o ferrolho do rifle, preparando a primeira bala, e foi impedido por Woods. Meus avós surgiram no alpendre, assustados com a cena. Eu e Tom nos escondemos atrás de um velho tronco caído, ninguém nos viu.

- Fique aqui Micaela, não se aproxime mais – foram as últimas palavras de Tom. Ele avançou mais alguns passos e foi observar tudo se esgueirando atrás de uma parede da casa, próximo demais do conflito.

Meu pai gritava contra Woods apontando o dedo opressivamente. Woods se manteve contido. Minha mãe o tentava conter como se previsse o que ia ocorrer. Foi tudo muito rápido, mas me lembro com riqueza de detalhes. Meu pai sacou o sabre. O soldado que já havia engatilhado a arma apontou o rifle para ele. Minha mãe abraçou meu pai pela frente, para lhe proteger. Woods, em um berro de negação, tentou impedir o tiro. O rifle teve a pontaria desviada, mas ainda assim disparou. Dois segundos após o som da explosão, ouviu-se o da queda de um corpo ao chão. Eles se viraram para trás. Ninguém além de mim sabia que ele estava lá até aquele momento. Tom havia sido alvejado no peito.

O sabre precipitou até o solo. Os olhos de meu pai arregalaram-se, vi espanto em seu rosto. Ele e minha mãe correram até o corpo. Coronel Woods fitou o autor do disparo furioso, mas não tomou nenhuma atitude na nossa frente. O susto foi muito forte para minha avó, que começou a passar mal e meu avô a levou para dentro de casa.

Não havia mais esperança para Tom. A bala atravessou o coração dele. Seu corpo fraco não pôde aguentar. Sangue quente e claro transbordou de seu peito para além das vestes simplórias, encharcou a grama de vermelho. O menino agonizava, respirando cada vez mais rápido e fraco, como um peixe que se tira da água, até finalmente cessar. Os olhos arregalados perderam o brilho rapidamente, estáticos. Ninguém podia fazer nada. O corpo inerte de Tom jazia no solo.

Só então eles me viram, agachada atrás do velho tronco apodrecido, chorando quieta. Assisti a tudo. Assisti à morte do meu primeiro e melhor amigo. Assisti à morte do meu primeiro amor de infância. Assisti a morte do jovem Tom.

***

Retornar é como subir à superfície de um lago depois se passar minutos intermináveis mergulhada. É como ter que respirar o ar quando seus pulmões estão cheios de água.

O suor fez a roupa colar-se ao meu corpo. Meus olhos estavam embaçados e ardiam como se há muito não se abrissem. Ouvia trovoadas intensas e agressivas gotas de chuvas atingiam uma escotilha. A tempestade começara em algum momento. O Confidente oscilava para cima e para baixo enjoativamente. Apenas uma fagulha restava no lampião sobre a mesa.

O livro nunca havia me trazido aquela lembrança. Foi horrível ver Tom morrer diante de mim novamente. O livro sempre fazia isso. Iludia-me com momentos de profunda alegria antes das grandes tragédias.

O que ele queria me revelar com aquilo? Estaria se referindo à Carmensita? Será que eu a colocaria em risco ao me relacionar com ela? Essas perguntas me abalaram. Senti-me desamparada. Eu havia apenas embarcado nessa jornada para salvá-la, e estaria assim colocando-a em risco? Mas que merda! O que eu poderia fazer então?

Com a última fagulha do lampião se esvaindo, retirei minhas roupas e me deitei em minha rede. A cabine estava muito escura, iluminada apenas por flashes repentinos de raios durante a tempestade.

Entreguei minhas dúvidas e incertezas aos sonhos, que por sinal não foram muito bons.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Capítulo Seis: Novos e Reduzidos Horizontes

Mandem-nos para a Torre. Eu não precisava ouvi-los para saber o que diziam.

Eu observava a movimentação nas docas através de minha luneta a bordo do Confidente. O navio observava distante Mirrorport assim que os primeiros raios de sol surgiram para descobrir o que havia acontecido à cidade costeira enquanto dormiam.

Uma fileira de homens e mulheres acorrentados nos pulsos e nos tornozelos andava nas docas, vestidos em farrapos. Um homem em fraque preto gritava ordens aos prisioneiros e coordenava alguns soldados ingleses.

Mandem-nos para a Torre. Era o que dizia. E eu não precisava ouvi-lo para saber o que dizia. O porto teria uma movimentação regular por algumas semanas. Periodicamente o mesmo navio viria, vazio, seria carregado de criminosos e partiria para Londres. O homem usava um chapéu com uma aba na frente curvada para cima. Alguns se honravam e anexavam o escudo do Império em uma peça de prata ou ouro. Estes homens eram conhecidos em todas as terras britânicas.

- Inflar as velas! – ordenou capitão Bromberg – Estamos há muito tempo parados. Vamos logo tomar nosso curso!

- E qual o nosso curso, capitão? – indagou Estevan, espanhol, novato no navio assim como a grande maioria.

- Vamos para Calais. Depois navegaremos para a Bretanha.

- Sim! Calais! – exclamou o contramestre, um negro por anos fiel ao capitão que posteriormente descobri ser do Rio de Janeiro – Lá estaremos a salvo dos ingleses. Sabe-se lá que loucura os atingiu para atacarem uma de suas próprias cidades!

- Ah, mas uma pessoa sabe – murmurou para si o capitão – Micaela! Baixe a luneta! Deixe de observar a malfadada cidade!

Lá estava ela. Lá estava Carmensita. Estava com o mesmo vestido da noite anterior, porém completamente danificado. Estava no meio de uma fileira de prisioneiros que subiam uma rampa de madeira para entrar no navio que a levaria para Londres. Eu tive outra chance, não podia desperdiça-la.

- Senhor, vamos abandonar nossos companheiros? – abaixei minha luneta e me virei ao capitão.

- Eles não passam de um bando de miseráveis desafortunados! – o capitão descia do castelo de popa para o convés onde estava a maioria dos marujos – E todos aqui seriam se não tivessem subido a bordo do Confidente a tempo! – ele encarava e intimidava cada presente enquanto dizia.

- Mas, capitão! Temos que fazer alguma coisa! Temos que salvá-los!

- E qual é o seu plano, Micaela? – Bromberg disse lentamente, desafiador – Quer que todos nós arrisquemos nossas vidas a troco de quem? Salvar indigentes de um navio que vai levá-los a prisão ou a forca?

Toda a tripulação se virou para mim. Bromberg aproximou-se até que nossos rostos estivessem bem próximos. Podia sentir os fios de sua desgrenhada barba castanha e o hálito fétido expelido por suas narinas.

- Não, você não faria isso, Micaela. Por ninguém de Mirrorport. Tem alguém que está naquele barco e que te faz se importar, não é mesmo? – dizia lentamente como se seu raciocínio estivesse a ponto de lhe revelar uma grande descoberta – Mas quem teria feito tal prodígio? Todos aos postos de trabalho – disse firme aos marujos – Vamos para Calais.

***

O capitão se recusou manter o curso durante a noite e a madrugada, alegando os perigos do canal e o estresse da tripulação. Idiota. Talvez se tivesse feito isso teria alcançado Calais a tempo, ou ao menos ultrapassado a metade da distância.

Reuni os homens no convés de carga. Tinha um dom persuasivo ótimo quando a situação era amotinar a tripulação. Todos no navio estariam dormindo a essa hora, com exceção dos vigias.

- Por que deveríamos nos amotinar? – indagou Estevan, carregado do sotaque espanhol.

- Bromberg é da velha guarda de Mirrorport – comecei. Preparei um ambiente sinistro para convencer os homens. Apenas uma lamparina iluminava o pequeno espaço onde dezenas se exprimiam ao redor de uma mesa – Ele tinha muitos amigos e inimigos que foram mortos ou capturados pelos soldados ingleses. Por que ele os abandonaria à própria sorte?

Os homens murmuraram entre si sem obter resposta alguma.

- Aí está! – exclamei – Bromberg é um maldito cão do mar. Ele jamais perderia uma oportunidade, uma brecha que fosse! Não, o capitão não recuaria em momentos de instabilidade até que as coisas se acalmassem. Algum de vocês faria isso?

Novamente eles se entreolharam, discutiram e chegaram ao consenso de, sendo piratas, tentariam se aproveitar da melhor maneira possível da situação.

- Ah, mas Bromberg também está se aproveitando! Já pararam para pensar em como o capitão tinha o navio pronto para zarpar exatamente no instante em que Mirrorport foi atacada?

Essa pergunta matou a todos. Por que ele partiria de madrugada? E quanta sorte em ser o único navio hábil a escapar durante o ataque.

- Sim, ele sabia do ataque!

O ruído se elevou. Deixei que eles se espantassem um pouco antes de pedir por silêncio ou seriamos descobertos. Eu os tinha na palma da mão! Todos se viraram para mim para ouvir o que dizia.

- Bromberg está a serviço dos ingleses que invadiram Mirrorport. A maioria de nós nesse navio é novata, somente o contramestre e uns poucos membros próximos ao capitão estão com ele há tempos. Senhores, atenção: tudo isso se trata de uma armadilha.

Impactados, os próprios marujos já criavam teorias e especulações, dando credibilidade às próprias fantasias. Eu não sabia de nada do que estava dizendo, não na íntegra. Mas associava alguns fatos secretamente em minha mente, e sabia fazê-los seguir-me em um motim.

Como uma rasteira na noite, os veteranos e Bromberg foram surpreendidos e capturados durante o sono, e o controle do Confidente foi confiado a mim!

- Coloquem ele na prancha! – Estevan gritava eufórico aos seus companheiros, com o anterior capitão do navio amarrado ao mastro principal.

- Não! – interferi – Coloquem ele na prisão! O interrogaremos e descobriremos seus planos antes disso!

- Micaela sua mentirosa desgraçada! Ardilosa! – Bromberg berrava em seus acessos de fúria. Foi prontamente amordaçado antes que pudesse fazer minha tripulação pensar e perceber o golpe.

- Quanto aos veteranos – desembainhei o sabre e apontei para os prisioneiros do alto do castelo de popa, para causar efeito – Eu, espirituosa e benignamente, ofereço-lhes uma redenção: sirvam-me honrosamente com o melhor de suas capacidades, ou entreguem suas vidas fracassadas a Deus e ao mar!

Bromberg, apesar de se cercar de gente competente, não sabia manipulá-los ao ponto de se tornarem fanáticos. Nenhuma morte, um navio, uma tripulação e membros experientes em apenas uma noite! Sério, não tem pra mim.

Ao nascer do sol, o Confidente alterava seu curso de volta à costa inglesa. Ao invés de pararmos em Calais, o faríamos em Dover, de onde eu encontraria o rastro daquele navio onde estava Carmensita e procuraria respostas a algumas perguntas. Até onde eu estava disposta a ir por aquela garota?

***

A taverna de Alfred Madbeg, ou Alfred Ricocheteio como chamávamos, era exótica. O então pirata extasiou-se quando descobriu Xangai. A maioria da tripulação não gostou. Na verdade, estavam loucos para retornar para a Inglaterra. Lá ele conheceu uma mulher, e logo se apaixonou por ela. Não me recordo o nome. Não bastou muito para que gente barra pesada tentasse matar o pobre pirata. Alfred não conseguiu levar a mulher consigo. Na fuga, um dos chineses que o perseguia atirou com a pistola que Alfred deixou cair. A péssima pontaria do homem foi compensada com um golpe de sorte. O tiro, que passaria longe do pirata, ricocheteou em um cano de metal e atingiu a perna, tornando Alfred um coxo. Ele largou a pirataria e abriu essa taverna em Dover, que decorou como um ambiente chinês.

- Micaela! – gritou logo que me viu entrar, junto de Estevan. Parecia surpreso a me ver. Avançamos até o balcão para que ele não se incomodasse em arrastar sua perna ruim pelo assoalho.

Não tinha muitas pessoas no local. Apenas um cômodo retangular com diversas mesas, lanternas chinesas na parede, uma única porta entre duas vidraças e diversas placas de madeira pirogravados ideogramas de boa sorte suspensos no ar.

- Preciso de informações, Alfred – fui direto ao ponto. O esquelético homem deixava transparecer um rosto de pleno desagrado e um sorriso forçado.

- O que precisa saber? – disse depois de gaguejar um bocado enquanto coçava compulsivamente a barba preta repleta de falhas.

- Um navio carregado de prisioneiros de Mirrorport passou por aqui recentemente. Preciso saber se parou aqui, qual a tripulação, como estão armados e em quanto tempo chegarão a Londres.

- E o que sabe do ataque a Mirrorport? – indagou Estevan, carregado de sotaque.

O espanhol era um homem alto, forte e atlético. Tinha os ombros e o peitoral largos. Os olhos eram pequenos e castanhos por baixo de sobrancelhas anguladas e arqueadas.  Cultivava um espesso bigode handlebar.

O rosto disforme de Alfred, em especial seu grande nariz adunco, mudou de forma diversas vezes, como se estivesse uma provação de limões.

- O navio se chama Condestável. É uma barcaça antiga agora equipada com propulsão a vapor. Há muito espaço para prisioneiros lá dentro. O capitão é um homem cruel, Micaela. Já o chamam de Charon, pelas costas. A tripulação é reduzida, mas dizem ter sido escolhida a dedo pelo capitão.

- Isso explica porque não o pegamos primeiro – raciocinei – Movido a vapor ele pode navegar a noite inteira.

- Há um homem novo no comando da RAN – Alfred dizia em voz baixa, mais covarde do que de costume – Há quanto tempo está em na cidade?

- Há dois dias, por que?

- Você precisa sair daqui o quanto antes Micaela!

O sininho anunciou a entrada de algumas pessoas na taverna. Não me virei. Continuei a fitar Alfred nos olhos. O coxo olhou por cima de meu ombro para ver de quem se tratava e disse emprestando sua voz animada e receptiva novamente:

- Sentem-se! Não posso permitir que saiam daqui sem provarem a minha famosa sopa de macarrão!

O homem magricela riu alto nervosamente e entrou na cozinha. Eu e Estevan nos sentamos à mesa mais próxima do balcão. O espanhol cerrou o cenho enquanto estralava os fortes dedos.

- O que estamos fazendo parados aqui? – ele perguntou baixo para que somente eu ouvisse – Não nos disse para desaparecer de Dover?

- Não conseguiremos sair – disse mantendo minha voz calma – Os homens que entraram aqui tentarão nos pegar.

Apontei discretamente para algumas mesas. Três sentaram-se nas mesas do fundo, iriam bloquear as saída. Outros dois buscaram a mesa mais próxima a nossa, tentariam nos abordar primeiro. Além disso, três pessoas em mesas distintas liam a mesma página de jornal desde que entramos. Provavelmente tinha alguém na cozinha que nos denunciou. Não poderíamos sair por lá.

Estevan não demonstrou medo, mas a situação não estava nada fácil. Ele cuidadosamente armou uma das pistolas que carregava no cinto.

Os dois na mesa mais próxima trocaram alguns sinais com as mãos e com a cabeça. Os homens não se vestiam como a maioria. Eram ex-soldados expulsos por mau comportamento, no mínimo. Botas e luvas escuras e surradas. A maioria usava largos chapéus, camisas claras e coletes. Eles sabiam esconder muito bem as armas, eu sequer conseguia ver onde estavam suas facas.

Um dos homens da mesa próxima se levantou. Alfred Ricocheteio estava morto. Ele avançou até nossa mesa, apoiou as duas mãos enluvadas sobre ela, olhou-me nos olhos por alguns instantes e se virou para Estevan. Pow!

O espanhol disparou sua arma por debaixo da mesa atingindo em cheio as bolas do desgraçado!

O homem se curvou sobre a mesa levando as mãos sobre o membro amputado, olhos saltados das órbitas e boca arreganhada, e recebeu um gancho de esquerda enquanto me levantava imediatamente! Saquei o revólver escondido nas costas e atirei contra seu comparsa por cima do ombro. Estevan virou a mesa e saltamos para trás do balcão. Os fregueses correram desesperados para a única saída quando o caos começou.

Nossos inimigos reagiram violentamente e responderam com uma saraivada de tiros. Estevan disparou sua segunda pistola sobre o balcão sem mirar e acertou uma das janelas. Os assassinos atiravam sem brecha contra o balcão de madeira, fazendo-o em lascas.

- Eles estão usando revólveres! – Estevan ponderou – Essas pistolas são lentas para responder ao fogo!

Chutei debaixo do balcão duas vezes com força e uma tábua de madeira cedeu, revelando uma espingarda em um compartimento secreto.

- Pegue isso! Pode dar oito disparos antes de recarregar!

Rearmei meu revólver e disparei sem ver por cima do balcão.

- Tem um espelho convexo na parede atrás deles! Use ele para acertá-los! Eu tomo conta da cozinha!

Preparei meu revólver para mais um disparo e engatinhei através de um véu que separava os ambientes. Tão logo entrei me protegi atrás da parede. Ouvia somente os disparos incessantes no salão que abandonei. Sentada no chão ao lado de um armário não via ninguém na cozinha.

A cozinha era composta por fogões a uma parede, pia e armários na parede oposta, o acesso ao salão por aonde vim, uma saída na parede oposta a essa, e uma grande mesa de madeira no centro repleta de alimentos em preparo e ferramentas. Panelas ferviam no fogo e uma torneira foi esquecida aberta. Logo, água escorreria pelo chão.

Levantei e estiquei o braço apontando a arma andando na direção da porta de saída. Um homem a guardava, mas não percebeu minha presença a tempo de reagir. Disparei contra seu peito. Fui surpreendida por outro comparsa que me desarmou com um golpe de panela.

Paralisada pela dor na mão, retrocedi alguns passos e escorreguei no chão molhado caindo de costas. Meu adversário armou-se de um cutelo que estava em cima da mesa, mas antes que ele pudesse desferir o golpe mortal rolei por baixo da mesa na direção do fogão! Mal pude me levantar e ele empurrou a pesada mesa tentando me prender, entretanto fui ágil e coloquei-me sobre o móvel habilmente. O homem avançou na minha direção com o cutelo. Agindo sem pensar, peguei uma das panelas que fervia no fogo com as duas mãos, rodopiei ao redor de mim mesma e arremessei contra o cretino! Ele gritava com o rosto completamente queimado e corria desesperado. O espanhol surgiu nesse momento e, com um único e preciso disparo da espingarda, acabou com o sofrimento do queimado.

- Vamos embora daqui! – fugimos pela porta do salão.

Vários haviam fugido de Estevan quando ficaram sem munição. Mais um amigo havia morrido por minha culpa. Eu não tinha todas as respostas que queria. Mas sabia que Dover não era um local a salvo para mim agora. Sabia que alguém estava tentando me matar e estava empenhado nisso. Tinha cada vez mais certeza que o ataque a Mirrorport estava ligado a mim. Sabia onde estava Carmensita e que os perigos que enfrentaria seriam muito maiores do que qualquer um que eu já havia enfrentado. E sabia, acima de tudo, que eu não possuía mais um porto seguro. Sabia que não podia mais voltar atrás.