quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Capítulo Nove: O Homem Sem Rosto - Parte 1



Ventava muito forte. Folhas despencavam das árvores e eram carregadas pelo vento. Nuvens negras cobriam todo o céu e formavam uma gigantesca espiral. Dúzias de navios voadores pairavam esparsos no céu. Eu via a casinha de meus avós novamente, com todas as portas e janelas fechadas ameaçando ceder aos fortes ventos. A árvore de galhos grossos estava atrás de mim, desfolhando-se completamente.

Protegi meu rosto do vento e das folhas que ele carregava e avancei custosamente contra a tempestade. Um raio saltou de uma das nuvens, ziguezagueou pelos ares e atingiu um dos navios voadores, que, ao invés de explodir, foi sendo consumido pelo fogo muito lentamente.

Meu pé toca sem firmeza o alpendre da casinha, ouço o som de um tiro atrás de mim e sinto-o percorrer minha espinha como uma aranha furiosa feita de agulhas. Viro-me para trás tomada pela angústia e observo aquela cena novamente, congelada. Vejo meu pai que empunha o sabre tomado de ira e é contido por minha mãe, o soldado em posição de tiro ainda segura o gatilho da arma, e Coronel Woods cujo rosto é tomado pelo desespero. Dessa vez, contudo, Tom não está lá para ser atingido, nem estão meus avós para presenciar o momento de horror.

Lágrimas alcançam meus olhos ardentes. Corro em direção à porta, meus passos escorregam no chão e sinto como se pesassem toneladas. Ataco a porta com garras prevendo sua resistência, porém, ela abre prontamente para minha passagem. Não sinto mais o vento em minha pele, ou as gotas salgadas em meu rosto. O reflexo no chão da alaranjada luz do sol que entra por uma esguia e luxuosa janela atinge meus olhos. Estou em um gabinete de luxo em algum palácio inglês. Vejo Woods de costas para mim. Ele está atrás de um balcão de madeira. Aqueles mesmos dois soldados estão um a cada lado de Anthony. Ele recebe suas ordens de um alto oficial. Um mordomo entra carregando uma bandeja e deixa xícaras sobre o balcão. Avanço alguns passos. Parece que eu não existo, ninguém reage a minha presença. Avanço alguns passos na direção do coronel. Posso enxergar o oficial, ele não tem rosto nem voz, embora eu saiba o que ele diz. Está dando as ordens para prender meu pai, um pirata dos ares.

Anthony Woods bate continência e deixa a sala com seus dois soldados. Não, não é isso. O oficial chamou por um deles, o que atirou e matou Tom. Posso ver bem sua face. Ele retorna e fica sozinho com o alto oficial. O homem sem rosto bebe alguns goles de uma das xícaras e diz poucas palavras ao soldado. Ele dá novas ordens. Mesmo sem poder ouvir sua voz, posso entender cada palavra que ele diz. O homem sem rosto diz para matar meu pai! Woods não pode saber da ordem e o soldado deve achar um modo para que tudo não pareça premeditado. Desgraçado! Ele conseguiu. O soldado deixa a sala, que se escurece.

Ouço a discussão entre meu pai e o Coronel Woods. Olho pela janela e o momento se repete. De repente estou dentro da casa de minha vó e vejo tudo por um ângulo que desconhecia. Minha mãe abraça meu pai por trás e tenta contê-lo.

- Como pôde fazer isso? – meu pai grita enfurecido – Como pode entrar nessa casa e dizer uma coisa dessas?

Vejo o soldado engatilhar a espingarda. O que? Por que ele faz isso? Não era o momento, não era assim que eu me recordava.

- Você não pode fazer tudo o que eles mandarem, Woods! – meu pai berrava, depois cerrava os dentes e o rosto se contorcia de raiva – Seja homem e pense por você mesmo! Olhe o que está fazendo! Condenando seu melhor amigo à morte!

O soldado aponta a arma. Meu estômago revira e sinto ânsia de vômito. Sei o que está por acontecer e não consigo evitar. Meu pai saca o sabre. O soldado solta um discreto riso, encontrou a brecha que tanto procurava. Coronel Woods vira o corpo para trás, o rosto tomado de pânico, e tenta impedir o disparo instantes antes de o soldado puxar o gatilho.

Cubro os olhos com as mãos e escuto somente o baque, que ecoa em minha mente. Caio em um abismo negro atemporal. Por que eu estava vendo aquilo tudo? Eu não queria! Tantas vezes eu desejei apagar o passado da minha memória e seguir uma nova vida, calma o bastante. Mas ao invés de ter meu desejo atendido, ocorreu justamente o oposto. Fui amaldiçoada com aquele livro insiste em me fazer reviver cada momento triste ou obscuro que já vivi.

Sinto a brisa tocar minha pele dos pés aos ombros. Um homem sem rosto. O que esse livro quer me mostrar?

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Diário de Micaela

Vai ser esse mesmo o nome! Estou batizando a novela Diário de Micaela.

O nome tem bem a ver com o item central da trama, o misterioso livro que ela carrega e a transporta para misteriosas lembranças.

Passei só pra avisar mesmo. Nada demais.

Abraços!

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Capítulo Oito: Resgate

Ver o Condestável abaixar a âncora sob a luz do luar me deu um surto de satisfação, rapidamente obliterado pelo medo e ansiedade crescentes de que nossa missão se aproximava.

Quando chegamos a Grays, o Condestável ainda estava lá. Por algum motivo que ainda não sabia, a barcaça nos esperou calmamente, ancorada no porto que fedia a peixes. Não gostei muito disso. De qualquer forma, ela não ficou por lá até o dia após nossa chegada. Agi rapidamente. Enquanto carregavam carvão no navio, nadei furtivamente e abri um rombo milimetricamente calculado no casco, escondido por um saco do combustível sólido. O carvão do depósito todo absorvera água. Não tardou muitos quilômetros para que a constante perda de potência impedisse o barco de continuar a subir o Tâmisa. O capitão, desconfiado, pedira para que averiguassem a situação da caldeira e, para tanto, teriam de cessar as operações.

Eu e maioria da minha tripulação viéramos a bordo de carruagens até Rainham, e avançamos até a barrenta margem do Tâmisa. A cidade estava morta àquela hora da madrugada. O capitão do Condestável e alguns tripulantes desceram do navio e subiram a margem até as ruas a procura de alguém que ajudasse.

A maldita barcaça ainda era guardada por soldados, e eles estavam muito atentos nos seus postos de vigias.

Estevan enviou um sinal para nossos companheiros entocados na mata ou outro lado da praia. O Condestável estava entre nossos dois grupos entocados. Preparei a primeira bala da espingarda e mirei um soldado no convés superior. Intermináveis segundos se seguiram. O que mais me atormentava no momento não era a dúvida sobre minhas habilidades de atiradora, mas sim a merda da arma que tinha uma precisão horrível.

O disparo ecoou pela noite, uma revoada de pássaros medrosos partiu do bosque onde estávamos, uma corda e uma tábua rangeram no Condestável, uma gota de suor pingou em meu olho direito! Tiro no ombro!

Avançamos como cães de rua sobre um filé malpassado na calçada! A tripulação do Condestável não teve tempo de subir a prancha antes que violássemos a sacralidade dos conveses. Uma primeira saraivada de tiros derrubou parte dos nossos, mas parte maior ainda deles! Os sabres foram sacados prematuramente em combate e não tardou para eu perder o meu. Novamente.

Mas lá estava Estevan e seus enormes bíceps para mostrar ao inglês como se usa uma lâmina! Corri para o convés inferior, onde estavam os prisioneiros. Eram ainda mais de que eu imaginava.

- Estevan, dê um jeito na caldeira! Contramestre, liberte os prisioneiros!

O convés inferior era baixo – algo que realmente não me incomodava – quente e úmido. O espaço apesar de amplo era sufocante, e deveria ser mais ainda durante o dia, a pleno funcionamento da caldeira. As vigas de madeira e as paredes já haviam sido completamente mascaradas pela fuligem. Os gases sulfurosos que escapam da caldeira marcavam presença em crostas amareladas corroendo o substrato.

A caldeira era ferro fundido maciço, e eu achava que ela poderia suportar mais de um tiro de canhão. O espanhol espantou o carvão do chão a diversos chutes até achar uma chave de boca de mais de um metro! Ele a fez atravessar diversas engrenagens da transmissão à roda externa. O sistema todo estaria travado e os pistões iriam emperrar se o motor entrasse em funcionamento. Era uma bomba-relógio!

Batista Santos, meu contramestre, o negro do Rio de Janeiro, avançou a passadas largas e rápidas pelo convés. Nunca havia visto um homem correr daquela forma. Com um pé-de-cabra que sempre carregava, ele quebrou os cadeados habilmente que trancavam as celas, verdadeiras gaiolas. Tentei acompanhar o negro procurando Carmensita entre os prisioneiros. Maldição! Não a encontrava de forma alguma! Ela não estava entre os prisioneiros no convés inferior.

- Estevan! – berrar por seu nome era a única alternativa no caos em que estava a multidão – Tem mais prisioneiros? Você viu se tem mais prisioneiros a bordo?

- Talvez tenham mais alguns na cabine do capitão! – ele me respondeu entre tosses e termos em espanhol.

Corremos até o convés superior. Nossos homens ainda enfrentavam a tripulação do Condestável. Os caras eram durões! Durante o ardor do combate, a fuga dos prisioneiros e antes que chegássemos à cabine do capitão, trombetas soaram em meio a disparos de rifles. O capitão do Condestável e a tripulação que haviam deixado o navio retornavam e estavam atirando em nós! Meus homens ficariam acuados e não teriam para onde fugir. Provavelmente o tal Charon não iria nos querer vivos.

- Não vamos conseguir voltar ao Confidente, Micaela! – Estevan segurava meus dois braços com força – Dê a ordem para retornarmos! Rápido ou não teremos chance!

Eu ainda não tinha Carmensita e não sairia dali sem ela. Não teria outra chance para resgatá-la antes que a levassem para a Torre. Não, eu não daria a ordem.

- Encontre Carmensita! Tire ela daqui e a mantenha a salvo, você me entendeu? – ordenei ao espanhol, cujos olhos me fitavam sem entender o que eu dizia. Eu não lhe contara sobre Carmensita. Nem a ele nem a ninguém.

Fomos atacados. Estevan me protegeu do primeiro golpe e derrubou um inimigo. Apoderei-me do sabre do homem sem sorte e comecei a lutar. Não conseguia pensar nem dizer nada! Apenas lutava instintivamente para me proteger, mas não conseguiria fazer isso para sempre.

- Abandonar o navio! – Estevan gritou repetidamente. Ele se afastara de mim e eu nem percebera – Retornem ao Confidente! Salvem suas vidas!

Eu só pude dizer um “Não!”, baixo demais para que qualquer um ouvisse, antes que fosse atacada novamente. Defendia-me dos golpes de sabre e recuava passo a passo para a proa. Era tarde demais, os tripulantes jamais poderiam se salvar agora. O capitão inimigo trazia o inferno consigo e era inevitável.

Meus devaneios remetiam à morte e ao fracasso, e graças a eles não estive atenta para me proteger de mais um golpe. Fui ao chão, ferida no braço. Mas o corte também desatou a tira de couro da bolsa que carregava, levando meu livro para longe de mim! Sim, eu estava carregando ele numa bolsa o tempo todo. Estava.

A bolsa caiu por um poço, uma conexão entre os conveses geralmente fechada com grade e que serve para elevar cargas entre os níveis. Pude ver, caída e atordoada, Estevan levando Carmensita pelo braço. Estavam longe do navio já. O espanhol havia sido bem rápido e entendeu o que eu não soube expressar com palavras.

O capitão retornou ao navio, a maioria dos meus homens estava sendo capturada e eu não seria exceção. Rolei pelas tábuas de madeira e caí para o segundo nível, evacuado. Os ingleses me denunciavam ao seu capitão. Recuperei-me das dores da queda e, segurando firme o ferimento no braço, avancei até a escada que descia para o convés inferior.

Charon demorou a me encontrar. Não porque ele não sabia onde eu estava. Não era isso. Ele só sabia que não tinha pra onde eu ir. Quando ele subiu a bordo, levantou a prancha e selou a barcaça consigo. Ele sabia que eu estava ferida e presa aqui em baixo, local de onde jamais poderia sair, e me atormentava com a angústia de sua demora.

Ele me encontrou caída no chão negro, ao lado da máquina a vapor que movia seu navio, encostada no casco velho, sujo e corroído por enxofre. Sua figura desceu degrau por degrau firme e lentamente. Luz irradiava atrás dele, tornando sua sombra longa e trépida. Seus marujos o seguiam, um deles carregando um lampião.

Era um homem velho, de físico desgastado pelas intempéries de uma vida de sofrimentos. Os olhos eram grandes círculos castanhos-cinzas, e bolsões vermelhos pendiam deles. Várias linhas na testa, ao redor dos olhos e da boca o envelheciam ainda mais. O cabelo que não estava coberto pelo chapéu era desgrenhado, irregulares cachos grandes e negros. Dos finos lábios seguia uma cicatriz esbranquiçada para a bochecha direita, onde havia a marca de uma grande queimadura que começava no pescoço e terminava próximo à têmpora. Barba grossa de vários dias lhe sujava ainda mais a face. Dos ombros pendia uma capa castanha, repleta de rasgos e furos na porção abaixo dos joelhos. Botas negras carregavam a lama da margem do Tâmisa que percorreu. Num largo cinturão de couro carregava duas pistolas distintas e uma faca de vinte centímetros embainhada. No topo do chapéu de aba curvada, uma peça de ouro com o brasão do império britânico conferia-lhe autoridade sobre a vida e a morte de pessoas que sequer conhecia.

- Micaela – a voz parecia vinda de túmulos. – O verme que rastejou até meu navio atrás dos restos para parasitar. Moleques frangotes só se metem comigo uma vez em toda a curta vida deles. Jamais há retorno.

Ele sacou uma das pistolas que carregava no cinturão, engatilhou e apontou para mim, inerte no chão.

- Sabe como são os navios que levam ao inferno as vítimas de Charon? – veio aquela voz lenta e pútrida novamente.

Ergui o rosto e olhei bem para ele, antes de responder-lhe minhas últimas palavras. Levei o braço até a alavanca que ligava o motor.

- A vapor. – Abaixei a alavanca e abracei meu livro.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Ausência Momentânea

Sem delongas, vim apenas informar meus prezados leitores que poderá haver um período um pouco longe sem postagem de novos capítulos. O motivo por trás é a época de provas na universidade (sim, eu estudo!) que está limitando meu tempo.

Mas como o exercício diário é o que faz do homem um atleta, procurarei produzir um conteúdo mínimo todos os dias. É o hábito da escrita que nos capacita a sermos bons escritores.

Despeço-me brevemente. Abraços!

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Capítulo Sete: Mergulho em Pesadelos

Pendurei um casaco em um gancho na minha cabine. Coloquei um par de botas sob ele. Calças, meias, luvas, tudo dobrado sobre um baú. O Confidente balançava e rangia periodicamente ao movimento da maré. Trovejava havia horas naquela noite, mas nenhuma gota de água havia caído ainda. Aguardei por uma tempestade que só viria horas depois.

Sentei-me abruptamente na cadeira. Meu livro estava em posição bem a minha frente. Trancara a porta previamente. Afastei a garrafa de vinho e a caneca e aproximei o lampião de mim sobre a mesa. Havia um bom tempo que eu não lia aquele livro.

Respirei profundamente algumas vezes. Minhas mãos suavam, estavam geladas. Meu coração acelerou, martelava. Eu sabia o que podia esperar daquilo tudo. Sabia o que sentia. Medo. Poderiam questionar minha sanidade em insistir com aquela tormenta, mas era preciso. Eu buscava respostas.

Lenta e hesitantemente, levei a mão até a uma das bordas do livro. Abri.

Trevas. Tudo deixou de existir. Eu deixei de existir. Tudo era atemporal. Mergulhei em um rodamoinho de sons, cheiros e lembranças fora de época e lugar.

***

Minhas mãos suavam, minha respiração estava ofegante. Podia sentir o coração palpitando no peito. Meus pensamentos estavam em caos, mas eu sorria ainda assim. Eu queria, mas não conseguia olhar para o rosto de Tom.

Estávamos à beira do riacho pedregoso, próximos da ponte de madeira. O vento batia no meu rosto e parecia que estava ainda mais frio. Algumas aves voaram alguns metros acima de nossas cabeças e se enfiaram entre os pinheiros na outra margem.

Tom atirou sua última pedrinha ao riacho. Olhei para suas mãos. Estavam inquietas, buscando algo para segurar. Já haviam se passados quinze minutos desde que ele me trouxe até aqui embaixo. Falava lenta e nervosamente sobre alguns assuntos com pouca profundidade. Tentava chegar ao ponto, porém não conseguia.

Eu sabia o que ele queria dizer, o que queria fazer me trazendo ali. Éramos crianças de apenas sete anos. Tom tinha sido meu amigo desde que se mudou com sua mãe para ser nossos vizinhos. Já se fazia dois anos isso. 

Me comichava por dentro. Queria ouvir de Tom que gostava de mim e queria dizer a ele que gostava dele também! Ele fora meu primeiro amigo. Era o único que me seguia nas minhas aventuras no bosque de pinheiros mesmo que isso lhe custasse voltar para casa todo arranhado dos galhos das árvores. Eu vira, escondida, ele apanhar de Brad e sua turma quando me insultaram e ele me defendera. Eu fora a única pessoa a quem ele mostrara a coleção de aranhas, escorpiões e cobras que havia sido de seu pai. E agora estávamos ali, sentados na relva à margem do riacho rochoso.

Ouvi um carro se aproximar e parar lá em cima da colina. Não me importei na hora quem estaria visitando meus avós ou meus pais. Eu só queria que Tom me dissesse logo que gostava de mim!

O céu estava completamente nublado. Eu gostava assim. Os ventos se tornaram mais intensos e folhas secas nos atingiram. Risos. Tom me olhou nervosamente. Quando nossos olhos se encontraram, ele congelou. Os cabelos loiros dele vinham na minha direção, estavam loucos para tocar os meus. Seus olhos azuis brilharam. Percebi sua pupila dilatar. Nossos dois corpos permaneceram estáticos por algum tempo, cessando a conversando que não havia tido importância alguma até aquele momento. Estávamos bobos, olhando um pro outro.

- Micaela, eu – lembro-me perfeitamente de sua voz um pouco ríspida.

Tom nunca terminou a frase. Gritos de uma discussão vindos da casa no alto da colina nos assustaram.

Os ventos se tornaram mais fortes e ouvi trovoadas que nunca ocorreram. Ele estava começando de novo. Era mais do que uma lembrança. Eu revivia aquele momento. Tive aquela sensação de quando percebemos que estamos sonhando, só que muito mais intensa. Mas eu não acordava como acontece normalmente. Eu sabia o que ia acontecer. Eu queria desesperadamente acordar, mas não conseguia! Eu não queria ver aquilo tudo de novo, não! Aquele universo se tornava instável, quebradiço. As imagens que eu via deixavam rastro, os sons ecoavam.

Da margem do riacho conseguíamos ver apenas um pedaço do telhado da casinha. Vimos dois vultos saindo pelo alpendre, discutindo violentamente. Tom disse que ia ver o que estava acontecendo.

- Tom, não! Não vá! Tom! – eu tentava impedi-lo, mas era incapaz.

Iria acontecer tudo novamente e eu não conseguia impedir. Corri atrás de Tom subindo a colina, gritando o nome dele e pedindo para esperar. Eu não havia feito isso, nada iria mudar.

Chegamos perto do topo. Meu pai discutia com o Coronel Woods, gritava a plenos pulmões, enquanto minha mãe tentava o conter pelas costas. Woods recuou para próximo do jipe do exército. Os dois soldados que estavam lá se colocaram em prontidão, alertas aos movimentos do meu pai. Um deles engatilhara o ferrolho do rifle, preparando a primeira bala, e foi impedido por Woods. Meus avós surgiram no alpendre, assustados com a cena. Eu e Tom nos escondemos atrás de um velho tronco caído, ninguém nos viu.

- Fique aqui Micaela, não se aproxime mais – foram as últimas palavras de Tom. Ele avançou mais alguns passos e foi observar tudo se esgueirando atrás de uma parede da casa, próximo demais do conflito.

Meu pai gritava contra Woods apontando o dedo opressivamente. Woods se manteve contido. Minha mãe o tentava conter como se previsse o que ia ocorrer. Foi tudo muito rápido, mas me lembro com riqueza de detalhes. Meu pai sacou o sabre. O soldado que já havia engatilhado a arma apontou o rifle para ele. Minha mãe abraçou meu pai pela frente, para lhe proteger. Woods, em um berro de negação, tentou impedir o tiro. O rifle teve a pontaria desviada, mas ainda assim disparou. Dois segundos após o som da explosão, ouviu-se o da queda de um corpo ao chão. Eles se viraram para trás. Ninguém além de mim sabia que ele estava lá até aquele momento. Tom havia sido alvejado no peito.

O sabre precipitou até o solo. Os olhos de meu pai arregalaram-se, vi espanto em seu rosto. Ele e minha mãe correram até o corpo. Coronel Woods fitou o autor do disparo furioso, mas não tomou nenhuma atitude na nossa frente. O susto foi muito forte para minha avó, que começou a passar mal e meu avô a levou para dentro de casa.

Não havia mais esperança para Tom. A bala atravessou o coração dele. Seu corpo fraco não pôde aguentar. Sangue quente e claro transbordou de seu peito para além das vestes simplórias, encharcou a grama de vermelho. O menino agonizava, respirando cada vez mais rápido e fraco, como um peixe que se tira da água, até finalmente cessar. Os olhos arregalados perderam o brilho rapidamente, estáticos. Ninguém podia fazer nada. O corpo inerte de Tom jazia no solo.

Só então eles me viram, agachada atrás do velho tronco apodrecido, chorando quieta. Assisti a tudo. Assisti à morte do meu primeiro e melhor amigo. Assisti à morte do meu primeiro amor de infância. Assisti a morte do jovem Tom.

***

Retornar é como subir à superfície de um lago depois se passar minutos intermináveis mergulhada. É como ter que respirar o ar quando seus pulmões estão cheios de água.

O suor fez a roupa colar-se ao meu corpo. Meus olhos estavam embaçados e ardiam como se há muito não se abrissem. Ouvia trovoadas intensas e agressivas gotas de chuvas atingiam uma escotilha. A tempestade começara em algum momento. O Confidente oscilava para cima e para baixo enjoativamente. Apenas uma fagulha restava no lampião sobre a mesa.

O livro nunca havia me trazido aquela lembrança. Foi horrível ver Tom morrer diante de mim novamente. O livro sempre fazia isso. Iludia-me com momentos de profunda alegria antes das grandes tragédias.

O que ele queria me revelar com aquilo? Estaria se referindo à Carmensita? Será que eu a colocaria em risco ao me relacionar com ela? Essas perguntas me abalaram. Senti-me desamparada. Eu havia apenas embarcado nessa jornada para salvá-la, e estaria assim colocando-a em risco? Mas que merda! O que eu poderia fazer então?

Com a última fagulha do lampião se esvaindo, retirei minhas roupas e me deitei em minha rede. A cabine estava muito escura, iluminada apenas por flashes repentinos de raios durante a tempestade.

Entreguei minhas dúvidas e incertezas aos sonhos, que por sinal não foram muito bons.