Ver o Condestável abaixar a âncora sob a luz do luar me deu
um surto de satisfação, rapidamente obliterado pelo medo e ansiedade crescentes
de que nossa missão se aproximava.
Quando chegamos a Grays, o Condestável ainda estava lá. Por
algum motivo que ainda não sabia, a barcaça nos esperou calmamente, ancorada no
porto que fedia a peixes. Não gostei muito disso. De qualquer forma, ela não
ficou por lá até o dia após nossa chegada. Agi rapidamente. Enquanto carregavam
carvão no navio, nadei furtivamente e abri um rombo milimetricamente calculado
no casco, escondido por um saco do combustível sólido. O carvão do depósito
todo absorvera água. Não tardou muitos quilômetros para que a constante perda
de potência impedisse o barco de continuar a subir o Tâmisa. O capitão, desconfiado,
pedira para que averiguassem a situação da caldeira e, para tanto, teriam de
cessar as operações.
Eu e maioria da minha tripulação viéramos a bordo de
carruagens até Rainham, e avançamos até a barrenta margem do Tâmisa. A cidade estava
morta àquela hora da madrugada. O capitão do Condestável e alguns tripulantes
desceram do navio e subiram a margem até as ruas a procura de alguém que
ajudasse.
A maldita barcaça ainda era guardada por soldados, e eles
estavam muito atentos nos seus postos de vigias.
Estevan enviou um sinal para nossos companheiros entocados
na mata ou outro lado da praia. O Condestável estava entre nossos dois grupos
entocados. Preparei a primeira bala da espingarda e mirei um soldado no convés
superior. Intermináveis segundos se seguiram. O que mais me atormentava no
momento não era a dúvida sobre minhas habilidades de atiradora, mas sim a merda
da arma que tinha uma precisão horrível.
O disparo ecoou pela noite, uma revoada de pássaros medrosos
partiu do bosque onde estávamos, uma corda e uma tábua rangeram no Condestável,
uma gota de suor pingou em meu olho direito! Tiro no ombro!
Avançamos como cães de rua sobre um filé malpassado na
calçada! A tripulação do Condestável não teve tempo de subir a prancha antes
que violássemos a sacralidade dos conveses. Uma primeira saraivada de tiros
derrubou parte dos nossos, mas parte maior ainda deles! Os sabres foram sacados
prematuramente em combate e não tardou para eu perder o meu. Novamente.
Mas lá estava Estevan e seus enormes bíceps para mostrar ao
inglês como se usa uma lâmina! Corri para o convés inferior, onde estavam os
prisioneiros. Eram ainda mais de que eu imaginava.
- Estevan, dê um jeito na caldeira! Contramestre, liberte os
prisioneiros!
O convés inferior era baixo – algo que realmente não me
incomodava – quente e úmido. O espaço apesar de amplo era sufocante, e deveria
ser mais ainda durante o dia, a pleno funcionamento da caldeira. As vigas de
madeira e as paredes já haviam sido completamente mascaradas pela fuligem. Os
gases sulfurosos que escapam da caldeira marcavam presença em crostas
amareladas corroendo o substrato.
A caldeira era ferro fundido maciço, e eu achava que ela poderia
suportar mais de um tiro de canhão. O espanhol espantou o carvão do chão a
diversos chutes até achar uma chave de boca de mais de um metro! Ele a fez
atravessar diversas engrenagens da transmissão à roda externa. O sistema todo
estaria travado e os pistões iriam emperrar se o motor entrasse em
funcionamento. Era uma bomba-relógio!
Batista Santos, meu contramestre, o negro do Rio de Janeiro,
avançou a passadas largas e rápidas pelo convés. Nunca havia visto um homem
correr daquela forma. Com um pé-de-cabra que sempre carregava, ele quebrou os
cadeados habilmente que trancavam as celas, verdadeiras gaiolas. Tentei
acompanhar o negro procurando Carmensita entre
os prisioneiros. Maldição! Não a encontrava de forma alguma! Ela não estava
entre os prisioneiros no convés inferior.
- Estevan! – berrar por seu nome era a única alternativa no
caos em que estava a multidão – Tem mais prisioneiros? Você viu se tem mais
prisioneiros a bordo?
- Talvez tenham mais alguns na cabine do capitão! – ele me
respondeu entre tosses e termos em espanhol.
Corremos até o convés superior. Nossos homens ainda
enfrentavam a tripulação do Condestável. Os caras eram durões! Durante o ardor
do combate, a fuga dos prisioneiros e antes que chegássemos à cabine do
capitão, trombetas soaram em meio a disparos de rifles. O capitão do
Condestável e a tripulação que haviam deixado o navio retornavam e estavam
atirando em nós! Meus homens ficariam acuados e não teriam para onde fugir.
Provavelmente o tal Charon não iria nos querer vivos.
- Não vamos conseguir voltar ao Confidente, Micaela! –
Estevan segurava meus dois braços com força – Dê a ordem para retornarmos!
Rápido ou não teremos chance!
Eu ainda não tinha Carmensita
e não sairia dali sem ela. Não teria outra chance para resgatá-la antes que a
levassem para a Torre. Não, eu não daria a ordem.
- Encontre Carmensita!
Tire ela daqui e a mantenha a salvo, você me entendeu? – ordenei ao espanhol,
cujos olhos me fitavam sem entender o que eu dizia. Eu não lhe contara sobre Carmensita. Nem a ele nem a ninguém.
Fomos atacados. Estevan me protegeu do primeiro golpe e
derrubou um inimigo. Apoderei-me do sabre do homem sem sorte e comecei a lutar.
Não conseguia pensar nem dizer nada! Apenas lutava instintivamente para me
proteger, mas não conseguiria fazer isso para sempre.
- Abandonar o navio! – Estevan gritou repetidamente. Ele se
afastara de mim e eu nem percebera – Retornem ao Confidente! Salvem suas vidas!
Eu só pude dizer um “Não!”, baixo demais para que qualquer
um ouvisse, antes que fosse atacada novamente. Defendia-me dos golpes de sabre
e recuava passo a passo para a proa. Era tarde demais, os tripulantes jamais poderiam
se salvar agora. O capitão inimigo trazia o inferno consigo e era inevitável.
Meus devaneios remetiam à morte e ao fracasso, e graças a
eles não estive atenta para me proteger de mais um golpe. Fui ao chão, ferida
no braço. Mas o corte também desatou a tira de couro da bolsa que carregava,
levando meu livro para longe de mim! Sim, eu estava carregando ele numa bolsa o
tempo todo. Estava.
A bolsa caiu por um poço, uma conexão entre os conveses
geralmente fechada com grade e que serve para elevar cargas entre os níveis.
Pude ver, caída e atordoada, Estevan levando Carmensita pelo braço. Estavam longe do navio já. O espanhol havia
sido bem rápido e entendeu o que eu não soube expressar com palavras.
O capitão retornou ao navio, a maioria dos meus homens
estava sendo capturada e eu não seria exceção. Rolei pelas tábuas de madeira e
caí para o segundo nível, evacuado. Os ingleses me denunciavam ao seu capitão. Recuperei-me
das dores da queda e, segurando firme o ferimento no braço, avancei até a
escada que descia para o convés inferior.
Charon demorou a me encontrar. Não porque ele não sabia onde
eu estava. Não era isso. Ele só sabia que não tinha pra onde eu ir. Quando ele
subiu a bordo, levantou a prancha e selou a barcaça consigo. Ele sabia que eu
estava ferida e presa aqui em baixo, local de onde jamais poderia sair, e me
atormentava com a angústia de sua demora.
Ele me encontrou caída no chão negro, ao lado da máquina a
vapor que movia seu navio, encostada no casco velho, sujo e corroído por
enxofre. Sua figura desceu degrau por degrau firme e lentamente. Luz irradiava
atrás dele, tornando sua sombra longa e trépida. Seus marujos o seguiam, um deles
carregando um lampião.
Era um homem velho, de físico desgastado pelas intempéries
de uma vida de sofrimentos. Os olhos eram grandes círculos castanhos-cinzas, e
bolsões vermelhos pendiam deles. Várias linhas na testa, ao redor dos olhos e
da boca o envelheciam ainda mais. O cabelo que não estava coberto pelo chapéu
era desgrenhado, irregulares cachos grandes e negros. Dos finos lábios seguia
uma cicatriz esbranquiçada para a bochecha direita, onde havia a marca de uma
grande queimadura que começava no pescoço e terminava próximo à têmpora. Barba
grossa de vários dias lhe sujava ainda mais a face. Dos ombros pendia uma capa
castanha, repleta de rasgos e furos na porção abaixo dos joelhos. Botas negras
carregavam a lama da margem do Tâmisa que percorreu. Num largo cinturão de couro
carregava duas pistolas distintas e uma faca de vinte centímetros embainhada.
No topo do chapéu de aba curvada, uma peça de ouro com o brasão do império britânico
conferia-lhe autoridade sobre a vida e a morte de pessoas que sequer conhecia.
- Micaela – a voz parecia vinda de túmulos. – O verme que
rastejou até meu navio atrás dos restos para parasitar. Moleques frangotes só
se metem comigo uma vez em toda a curta vida deles. Jamais há retorno.
Ele sacou uma das pistolas que carregava no cinturão,
engatilhou e apontou para mim, inerte no chão.
- Sabe como são os navios que levam ao inferno as vítimas de
Charon? – veio aquela voz lenta e pútrida novamente.
Ergui o rosto e olhei bem para ele, antes de responder-lhe
minhas últimas palavras. Levei o braço até a alavanca que ligava o motor.
- A vapor. – Abaixei a alavanca e abracei meu livro.
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