sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Capítulo Oito: Resgate

Ver o Condestável abaixar a âncora sob a luz do luar me deu um surto de satisfação, rapidamente obliterado pelo medo e ansiedade crescentes de que nossa missão se aproximava.

Quando chegamos a Grays, o Condestável ainda estava lá. Por algum motivo que ainda não sabia, a barcaça nos esperou calmamente, ancorada no porto que fedia a peixes. Não gostei muito disso. De qualquer forma, ela não ficou por lá até o dia após nossa chegada. Agi rapidamente. Enquanto carregavam carvão no navio, nadei furtivamente e abri um rombo milimetricamente calculado no casco, escondido por um saco do combustível sólido. O carvão do depósito todo absorvera água. Não tardou muitos quilômetros para que a constante perda de potência impedisse o barco de continuar a subir o Tâmisa. O capitão, desconfiado, pedira para que averiguassem a situação da caldeira e, para tanto, teriam de cessar as operações.

Eu e maioria da minha tripulação viéramos a bordo de carruagens até Rainham, e avançamos até a barrenta margem do Tâmisa. A cidade estava morta àquela hora da madrugada. O capitão do Condestável e alguns tripulantes desceram do navio e subiram a margem até as ruas a procura de alguém que ajudasse.

A maldita barcaça ainda era guardada por soldados, e eles estavam muito atentos nos seus postos de vigias.

Estevan enviou um sinal para nossos companheiros entocados na mata ou outro lado da praia. O Condestável estava entre nossos dois grupos entocados. Preparei a primeira bala da espingarda e mirei um soldado no convés superior. Intermináveis segundos se seguiram. O que mais me atormentava no momento não era a dúvida sobre minhas habilidades de atiradora, mas sim a merda da arma que tinha uma precisão horrível.

O disparo ecoou pela noite, uma revoada de pássaros medrosos partiu do bosque onde estávamos, uma corda e uma tábua rangeram no Condestável, uma gota de suor pingou em meu olho direito! Tiro no ombro!

Avançamos como cães de rua sobre um filé malpassado na calçada! A tripulação do Condestável não teve tempo de subir a prancha antes que violássemos a sacralidade dos conveses. Uma primeira saraivada de tiros derrubou parte dos nossos, mas parte maior ainda deles! Os sabres foram sacados prematuramente em combate e não tardou para eu perder o meu. Novamente.

Mas lá estava Estevan e seus enormes bíceps para mostrar ao inglês como se usa uma lâmina! Corri para o convés inferior, onde estavam os prisioneiros. Eram ainda mais de que eu imaginava.

- Estevan, dê um jeito na caldeira! Contramestre, liberte os prisioneiros!

O convés inferior era baixo – algo que realmente não me incomodava – quente e úmido. O espaço apesar de amplo era sufocante, e deveria ser mais ainda durante o dia, a pleno funcionamento da caldeira. As vigas de madeira e as paredes já haviam sido completamente mascaradas pela fuligem. Os gases sulfurosos que escapam da caldeira marcavam presença em crostas amareladas corroendo o substrato.

A caldeira era ferro fundido maciço, e eu achava que ela poderia suportar mais de um tiro de canhão. O espanhol espantou o carvão do chão a diversos chutes até achar uma chave de boca de mais de um metro! Ele a fez atravessar diversas engrenagens da transmissão à roda externa. O sistema todo estaria travado e os pistões iriam emperrar se o motor entrasse em funcionamento. Era uma bomba-relógio!

Batista Santos, meu contramestre, o negro do Rio de Janeiro, avançou a passadas largas e rápidas pelo convés. Nunca havia visto um homem correr daquela forma. Com um pé-de-cabra que sempre carregava, ele quebrou os cadeados habilmente que trancavam as celas, verdadeiras gaiolas. Tentei acompanhar o negro procurando Carmensita entre os prisioneiros. Maldição! Não a encontrava de forma alguma! Ela não estava entre os prisioneiros no convés inferior.

- Estevan! – berrar por seu nome era a única alternativa no caos em que estava a multidão – Tem mais prisioneiros? Você viu se tem mais prisioneiros a bordo?

- Talvez tenham mais alguns na cabine do capitão! – ele me respondeu entre tosses e termos em espanhol.

Corremos até o convés superior. Nossos homens ainda enfrentavam a tripulação do Condestável. Os caras eram durões! Durante o ardor do combate, a fuga dos prisioneiros e antes que chegássemos à cabine do capitão, trombetas soaram em meio a disparos de rifles. O capitão do Condestável e a tripulação que haviam deixado o navio retornavam e estavam atirando em nós! Meus homens ficariam acuados e não teriam para onde fugir. Provavelmente o tal Charon não iria nos querer vivos.

- Não vamos conseguir voltar ao Confidente, Micaela! – Estevan segurava meus dois braços com força – Dê a ordem para retornarmos! Rápido ou não teremos chance!

Eu ainda não tinha Carmensita e não sairia dali sem ela. Não teria outra chance para resgatá-la antes que a levassem para a Torre. Não, eu não daria a ordem.

- Encontre Carmensita! Tire ela daqui e a mantenha a salvo, você me entendeu? – ordenei ao espanhol, cujos olhos me fitavam sem entender o que eu dizia. Eu não lhe contara sobre Carmensita. Nem a ele nem a ninguém.

Fomos atacados. Estevan me protegeu do primeiro golpe e derrubou um inimigo. Apoderei-me do sabre do homem sem sorte e comecei a lutar. Não conseguia pensar nem dizer nada! Apenas lutava instintivamente para me proteger, mas não conseguiria fazer isso para sempre.

- Abandonar o navio! – Estevan gritou repetidamente. Ele se afastara de mim e eu nem percebera – Retornem ao Confidente! Salvem suas vidas!

Eu só pude dizer um “Não!”, baixo demais para que qualquer um ouvisse, antes que fosse atacada novamente. Defendia-me dos golpes de sabre e recuava passo a passo para a proa. Era tarde demais, os tripulantes jamais poderiam se salvar agora. O capitão inimigo trazia o inferno consigo e era inevitável.

Meus devaneios remetiam à morte e ao fracasso, e graças a eles não estive atenta para me proteger de mais um golpe. Fui ao chão, ferida no braço. Mas o corte também desatou a tira de couro da bolsa que carregava, levando meu livro para longe de mim! Sim, eu estava carregando ele numa bolsa o tempo todo. Estava.

A bolsa caiu por um poço, uma conexão entre os conveses geralmente fechada com grade e que serve para elevar cargas entre os níveis. Pude ver, caída e atordoada, Estevan levando Carmensita pelo braço. Estavam longe do navio já. O espanhol havia sido bem rápido e entendeu o que eu não soube expressar com palavras.

O capitão retornou ao navio, a maioria dos meus homens estava sendo capturada e eu não seria exceção. Rolei pelas tábuas de madeira e caí para o segundo nível, evacuado. Os ingleses me denunciavam ao seu capitão. Recuperei-me das dores da queda e, segurando firme o ferimento no braço, avancei até a escada que descia para o convés inferior.

Charon demorou a me encontrar. Não porque ele não sabia onde eu estava. Não era isso. Ele só sabia que não tinha pra onde eu ir. Quando ele subiu a bordo, levantou a prancha e selou a barcaça consigo. Ele sabia que eu estava ferida e presa aqui em baixo, local de onde jamais poderia sair, e me atormentava com a angústia de sua demora.

Ele me encontrou caída no chão negro, ao lado da máquina a vapor que movia seu navio, encostada no casco velho, sujo e corroído por enxofre. Sua figura desceu degrau por degrau firme e lentamente. Luz irradiava atrás dele, tornando sua sombra longa e trépida. Seus marujos o seguiam, um deles carregando um lampião.

Era um homem velho, de físico desgastado pelas intempéries de uma vida de sofrimentos. Os olhos eram grandes círculos castanhos-cinzas, e bolsões vermelhos pendiam deles. Várias linhas na testa, ao redor dos olhos e da boca o envelheciam ainda mais. O cabelo que não estava coberto pelo chapéu era desgrenhado, irregulares cachos grandes e negros. Dos finos lábios seguia uma cicatriz esbranquiçada para a bochecha direita, onde havia a marca de uma grande queimadura que começava no pescoço e terminava próximo à têmpora. Barba grossa de vários dias lhe sujava ainda mais a face. Dos ombros pendia uma capa castanha, repleta de rasgos e furos na porção abaixo dos joelhos. Botas negras carregavam a lama da margem do Tâmisa que percorreu. Num largo cinturão de couro carregava duas pistolas distintas e uma faca de vinte centímetros embainhada. No topo do chapéu de aba curvada, uma peça de ouro com o brasão do império britânico conferia-lhe autoridade sobre a vida e a morte de pessoas que sequer conhecia.

- Micaela – a voz parecia vinda de túmulos. – O verme que rastejou até meu navio atrás dos restos para parasitar. Moleques frangotes só se metem comigo uma vez em toda a curta vida deles. Jamais há retorno.

Ele sacou uma das pistolas que carregava no cinturão, engatilhou e apontou para mim, inerte no chão.

- Sabe como são os navios que levam ao inferno as vítimas de Charon? – veio aquela voz lenta e pútrida novamente.

Ergui o rosto e olhei bem para ele, antes de responder-lhe minhas últimas palavras. Levei o braço até a alavanca que ligava o motor.

- A vapor. – Abaixei a alavanca e abracei meu livro.

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