terça-feira, 2 de outubro de 2012

Capítulo Seis: Novos e Reduzidos Horizontes

Mandem-nos para a Torre. Eu não precisava ouvi-los para saber o que diziam.

Eu observava a movimentação nas docas através de minha luneta a bordo do Confidente. O navio observava distante Mirrorport assim que os primeiros raios de sol surgiram para descobrir o que havia acontecido à cidade costeira enquanto dormiam.

Uma fileira de homens e mulheres acorrentados nos pulsos e nos tornozelos andava nas docas, vestidos em farrapos. Um homem em fraque preto gritava ordens aos prisioneiros e coordenava alguns soldados ingleses.

Mandem-nos para a Torre. Era o que dizia. E eu não precisava ouvi-lo para saber o que dizia. O porto teria uma movimentação regular por algumas semanas. Periodicamente o mesmo navio viria, vazio, seria carregado de criminosos e partiria para Londres. O homem usava um chapéu com uma aba na frente curvada para cima. Alguns se honravam e anexavam o escudo do Império em uma peça de prata ou ouro. Estes homens eram conhecidos em todas as terras britânicas.

- Inflar as velas! – ordenou capitão Bromberg – Estamos há muito tempo parados. Vamos logo tomar nosso curso!

- E qual o nosso curso, capitão? – indagou Estevan, espanhol, novato no navio assim como a grande maioria.

- Vamos para Calais. Depois navegaremos para a Bretanha.

- Sim! Calais! – exclamou o contramestre, um negro por anos fiel ao capitão que posteriormente descobri ser do Rio de Janeiro – Lá estaremos a salvo dos ingleses. Sabe-se lá que loucura os atingiu para atacarem uma de suas próprias cidades!

- Ah, mas uma pessoa sabe – murmurou para si o capitão – Micaela! Baixe a luneta! Deixe de observar a malfadada cidade!

Lá estava ela. Lá estava Carmensita. Estava com o mesmo vestido da noite anterior, porém completamente danificado. Estava no meio de uma fileira de prisioneiros que subiam uma rampa de madeira para entrar no navio que a levaria para Londres. Eu tive outra chance, não podia desperdiça-la.

- Senhor, vamos abandonar nossos companheiros? – abaixei minha luneta e me virei ao capitão.

- Eles não passam de um bando de miseráveis desafortunados! – o capitão descia do castelo de popa para o convés onde estava a maioria dos marujos – E todos aqui seriam se não tivessem subido a bordo do Confidente a tempo! – ele encarava e intimidava cada presente enquanto dizia.

- Mas, capitão! Temos que fazer alguma coisa! Temos que salvá-los!

- E qual é o seu plano, Micaela? – Bromberg disse lentamente, desafiador – Quer que todos nós arrisquemos nossas vidas a troco de quem? Salvar indigentes de um navio que vai levá-los a prisão ou a forca?

Toda a tripulação se virou para mim. Bromberg aproximou-se até que nossos rostos estivessem bem próximos. Podia sentir os fios de sua desgrenhada barba castanha e o hálito fétido expelido por suas narinas.

- Não, você não faria isso, Micaela. Por ninguém de Mirrorport. Tem alguém que está naquele barco e que te faz se importar, não é mesmo? – dizia lentamente como se seu raciocínio estivesse a ponto de lhe revelar uma grande descoberta – Mas quem teria feito tal prodígio? Todos aos postos de trabalho – disse firme aos marujos – Vamos para Calais.

***

O capitão se recusou manter o curso durante a noite e a madrugada, alegando os perigos do canal e o estresse da tripulação. Idiota. Talvez se tivesse feito isso teria alcançado Calais a tempo, ou ao menos ultrapassado a metade da distância.

Reuni os homens no convés de carga. Tinha um dom persuasivo ótimo quando a situação era amotinar a tripulação. Todos no navio estariam dormindo a essa hora, com exceção dos vigias.

- Por que deveríamos nos amotinar? – indagou Estevan, carregado do sotaque espanhol.

- Bromberg é da velha guarda de Mirrorport – comecei. Preparei um ambiente sinistro para convencer os homens. Apenas uma lamparina iluminava o pequeno espaço onde dezenas se exprimiam ao redor de uma mesa – Ele tinha muitos amigos e inimigos que foram mortos ou capturados pelos soldados ingleses. Por que ele os abandonaria à própria sorte?

Os homens murmuraram entre si sem obter resposta alguma.

- Aí está! – exclamei – Bromberg é um maldito cão do mar. Ele jamais perderia uma oportunidade, uma brecha que fosse! Não, o capitão não recuaria em momentos de instabilidade até que as coisas se acalmassem. Algum de vocês faria isso?

Novamente eles se entreolharam, discutiram e chegaram ao consenso de, sendo piratas, tentariam se aproveitar da melhor maneira possível da situação.

- Ah, mas Bromberg também está se aproveitando! Já pararam para pensar em como o capitão tinha o navio pronto para zarpar exatamente no instante em que Mirrorport foi atacada?

Essa pergunta matou a todos. Por que ele partiria de madrugada? E quanta sorte em ser o único navio hábil a escapar durante o ataque.

- Sim, ele sabia do ataque!

O ruído se elevou. Deixei que eles se espantassem um pouco antes de pedir por silêncio ou seriamos descobertos. Eu os tinha na palma da mão! Todos se viraram para mim para ouvir o que dizia.

- Bromberg está a serviço dos ingleses que invadiram Mirrorport. A maioria de nós nesse navio é novata, somente o contramestre e uns poucos membros próximos ao capitão estão com ele há tempos. Senhores, atenção: tudo isso se trata de uma armadilha.

Impactados, os próprios marujos já criavam teorias e especulações, dando credibilidade às próprias fantasias. Eu não sabia de nada do que estava dizendo, não na íntegra. Mas associava alguns fatos secretamente em minha mente, e sabia fazê-los seguir-me em um motim.

Como uma rasteira na noite, os veteranos e Bromberg foram surpreendidos e capturados durante o sono, e o controle do Confidente foi confiado a mim!

- Coloquem ele na prancha! – Estevan gritava eufórico aos seus companheiros, com o anterior capitão do navio amarrado ao mastro principal.

- Não! – interferi – Coloquem ele na prisão! O interrogaremos e descobriremos seus planos antes disso!

- Micaela sua mentirosa desgraçada! Ardilosa! – Bromberg berrava em seus acessos de fúria. Foi prontamente amordaçado antes que pudesse fazer minha tripulação pensar e perceber o golpe.

- Quanto aos veteranos – desembainhei o sabre e apontei para os prisioneiros do alto do castelo de popa, para causar efeito – Eu, espirituosa e benignamente, ofereço-lhes uma redenção: sirvam-me honrosamente com o melhor de suas capacidades, ou entreguem suas vidas fracassadas a Deus e ao mar!

Bromberg, apesar de se cercar de gente competente, não sabia manipulá-los ao ponto de se tornarem fanáticos. Nenhuma morte, um navio, uma tripulação e membros experientes em apenas uma noite! Sério, não tem pra mim.

Ao nascer do sol, o Confidente alterava seu curso de volta à costa inglesa. Ao invés de pararmos em Calais, o faríamos em Dover, de onde eu encontraria o rastro daquele navio onde estava Carmensita e procuraria respostas a algumas perguntas. Até onde eu estava disposta a ir por aquela garota?

***

A taverna de Alfred Madbeg, ou Alfred Ricocheteio como chamávamos, era exótica. O então pirata extasiou-se quando descobriu Xangai. A maioria da tripulação não gostou. Na verdade, estavam loucos para retornar para a Inglaterra. Lá ele conheceu uma mulher, e logo se apaixonou por ela. Não me recordo o nome. Não bastou muito para que gente barra pesada tentasse matar o pobre pirata. Alfred não conseguiu levar a mulher consigo. Na fuga, um dos chineses que o perseguia atirou com a pistola que Alfred deixou cair. A péssima pontaria do homem foi compensada com um golpe de sorte. O tiro, que passaria longe do pirata, ricocheteou em um cano de metal e atingiu a perna, tornando Alfred um coxo. Ele largou a pirataria e abriu essa taverna em Dover, que decorou como um ambiente chinês.

- Micaela! – gritou logo que me viu entrar, junto de Estevan. Parecia surpreso a me ver. Avançamos até o balcão para que ele não se incomodasse em arrastar sua perna ruim pelo assoalho.

Não tinha muitas pessoas no local. Apenas um cômodo retangular com diversas mesas, lanternas chinesas na parede, uma única porta entre duas vidraças e diversas placas de madeira pirogravados ideogramas de boa sorte suspensos no ar.

- Preciso de informações, Alfred – fui direto ao ponto. O esquelético homem deixava transparecer um rosto de pleno desagrado e um sorriso forçado.

- O que precisa saber? – disse depois de gaguejar um bocado enquanto coçava compulsivamente a barba preta repleta de falhas.

- Um navio carregado de prisioneiros de Mirrorport passou por aqui recentemente. Preciso saber se parou aqui, qual a tripulação, como estão armados e em quanto tempo chegarão a Londres.

- E o que sabe do ataque a Mirrorport? – indagou Estevan, carregado de sotaque.

O espanhol era um homem alto, forte e atlético. Tinha os ombros e o peitoral largos. Os olhos eram pequenos e castanhos por baixo de sobrancelhas anguladas e arqueadas.  Cultivava um espesso bigode handlebar.

O rosto disforme de Alfred, em especial seu grande nariz adunco, mudou de forma diversas vezes, como se estivesse uma provação de limões.

- O navio se chama Condestável. É uma barcaça antiga agora equipada com propulsão a vapor. Há muito espaço para prisioneiros lá dentro. O capitão é um homem cruel, Micaela. Já o chamam de Charon, pelas costas. A tripulação é reduzida, mas dizem ter sido escolhida a dedo pelo capitão.

- Isso explica porque não o pegamos primeiro – raciocinei – Movido a vapor ele pode navegar a noite inteira.

- Há um homem novo no comando da RAN – Alfred dizia em voz baixa, mais covarde do que de costume – Há quanto tempo está em na cidade?

- Há dois dias, por que?

- Você precisa sair daqui o quanto antes Micaela!

O sininho anunciou a entrada de algumas pessoas na taverna. Não me virei. Continuei a fitar Alfred nos olhos. O coxo olhou por cima de meu ombro para ver de quem se tratava e disse emprestando sua voz animada e receptiva novamente:

- Sentem-se! Não posso permitir que saiam daqui sem provarem a minha famosa sopa de macarrão!

O homem magricela riu alto nervosamente e entrou na cozinha. Eu e Estevan nos sentamos à mesa mais próxima do balcão. O espanhol cerrou o cenho enquanto estralava os fortes dedos.

- O que estamos fazendo parados aqui? – ele perguntou baixo para que somente eu ouvisse – Não nos disse para desaparecer de Dover?

- Não conseguiremos sair – disse mantendo minha voz calma – Os homens que entraram aqui tentarão nos pegar.

Apontei discretamente para algumas mesas. Três sentaram-se nas mesas do fundo, iriam bloquear as saída. Outros dois buscaram a mesa mais próxima a nossa, tentariam nos abordar primeiro. Além disso, três pessoas em mesas distintas liam a mesma página de jornal desde que entramos. Provavelmente tinha alguém na cozinha que nos denunciou. Não poderíamos sair por lá.

Estevan não demonstrou medo, mas a situação não estava nada fácil. Ele cuidadosamente armou uma das pistolas que carregava no cinto.

Os dois na mesa mais próxima trocaram alguns sinais com as mãos e com a cabeça. Os homens não se vestiam como a maioria. Eram ex-soldados expulsos por mau comportamento, no mínimo. Botas e luvas escuras e surradas. A maioria usava largos chapéus, camisas claras e coletes. Eles sabiam esconder muito bem as armas, eu sequer conseguia ver onde estavam suas facas.

Um dos homens da mesa próxima se levantou. Alfred Ricocheteio estava morto. Ele avançou até nossa mesa, apoiou as duas mãos enluvadas sobre ela, olhou-me nos olhos por alguns instantes e se virou para Estevan. Pow!

O espanhol disparou sua arma por debaixo da mesa atingindo em cheio as bolas do desgraçado!

O homem se curvou sobre a mesa levando as mãos sobre o membro amputado, olhos saltados das órbitas e boca arreganhada, e recebeu um gancho de esquerda enquanto me levantava imediatamente! Saquei o revólver escondido nas costas e atirei contra seu comparsa por cima do ombro. Estevan virou a mesa e saltamos para trás do balcão. Os fregueses correram desesperados para a única saída quando o caos começou.

Nossos inimigos reagiram violentamente e responderam com uma saraivada de tiros. Estevan disparou sua segunda pistola sobre o balcão sem mirar e acertou uma das janelas. Os assassinos atiravam sem brecha contra o balcão de madeira, fazendo-o em lascas.

- Eles estão usando revólveres! – Estevan ponderou – Essas pistolas são lentas para responder ao fogo!

Chutei debaixo do balcão duas vezes com força e uma tábua de madeira cedeu, revelando uma espingarda em um compartimento secreto.

- Pegue isso! Pode dar oito disparos antes de recarregar!

Rearmei meu revólver e disparei sem ver por cima do balcão.

- Tem um espelho convexo na parede atrás deles! Use ele para acertá-los! Eu tomo conta da cozinha!

Preparei meu revólver para mais um disparo e engatinhei através de um véu que separava os ambientes. Tão logo entrei me protegi atrás da parede. Ouvia somente os disparos incessantes no salão que abandonei. Sentada no chão ao lado de um armário não via ninguém na cozinha.

A cozinha era composta por fogões a uma parede, pia e armários na parede oposta, o acesso ao salão por aonde vim, uma saída na parede oposta a essa, e uma grande mesa de madeira no centro repleta de alimentos em preparo e ferramentas. Panelas ferviam no fogo e uma torneira foi esquecida aberta. Logo, água escorreria pelo chão.

Levantei e estiquei o braço apontando a arma andando na direção da porta de saída. Um homem a guardava, mas não percebeu minha presença a tempo de reagir. Disparei contra seu peito. Fui surpreendida por outro comparsa que me desarmou com um golpe de panela.

Paralisada pela dor na mão, retrocedi alguns passos e escorreguei no chão molhado caindo de costas. Meu adversário armou-se de um cutelo que estava em cima da mesa, mas antes que ele pudesse desferir o golpe mortal rolei por baixo da mesa na direção do fogão! Mal pude me levantar e ele empurrou a pesada mesa tentando me prender, entretanto fui ágil e coloquei-me sobre o móvel habilmente. O homem avançou na minha direção com o cutelo. Agindo sem pensar, peguei uma das panelas que fervia no fogo com as duas mãos, rodopiei ao redor de mim mesma e arremessei contra o cretino! Ele gritava com o rosto completamente queimado e corria desesperado. O espanhol surgiu nesse momento e, com um único e preciso disparo da espingarda, acabou com o sofrimento do queimado.

- Vamos embora daqui! – fugimos pela porta do salão.

Vários haviam fugido de Estevan quando ficaram sem munição. Mais um amigo havia morrido por minha culpa. Eu não tinha todas as respostas que queria. Mas sabia que Dover não era um local a salvo para mim agora. Sabia que alguém estava tentando me matar e estava empenhado nisso. Tinha cada vez mais certeza que o ataque a Mirrorport estava ligado a mim. Sabia onde estava Carmensita e que os perigos que enfrentaria seriam muito maiores do que qualquer um que eu já havia enfrentado. E sabia, acima de tudo, que eu não possuía mais um porto seguro. Sabia que não podia mais voltar atrás.

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