Mandem-nos para a Torre. Eu não precisava ouvi-los para
saber o que diziam.
Eu observava a movimentação nas docas através de minha
luneta a bordo do Confidente. O navio observava distante Mirrorport assim que
os primeiros raios de sol surgiram para descobrir o que havia acontecido à
cidade costeira enquanto dormiam.
Uma fileira de homens e mulheres acorrentados nos pulsos e
nos tornozelos andava nas docas, vestidos em farrapos. Um homem em fraque preto
gritava ordens aos prisioneiros e coordenava alguns soldados ingleses.
Mandem-nos para a Torre. Era o que dizia. E eu não precisava
ouvi-lo para saber o que dizia. O porto teria uma movimentação regular por
algumas semanas. Periodicamente o mesmo navio viria, vazio, seria carregado de
criminosos e partiria para Londres. O homem usava um chapéu com uma aba na
frente curvada para cima. Alguns se honravam e anexavam o escudo do Império em
uma peça de prata ou ouro. Estes homens eram conhecidos em todas as terras
britânicas.
- Inflar as velas! – ordenou capitão Bromberg – Estamos há
muito tempo parados. Vamos logo tomar nosso curso!
- E qual o nosso curso, capitão? – indagou Estevan, espanhol,
novato no navio assim como a grande maioria.
- Vamos para Calais. Depois navegaremos para a Bretanha.
- Sim! Calais! – exclamou o contramestre, um negro por anos fiel
ao capitão que posteriormente descobri ser do Rio de Janeiro – Lá estaremos a
salvo dos ingleses. Sabe-se lá que loucura os atingiu para atacarem uma de suas
próprias cidades!
- Ah, mas uma pessoa sabe – murmurou para si o capitão –
Micaela! Baixe a luneta! Deixe de observar a malfadada cidade!
Lá estava ela. Lá estava Carmensita.
Estava com o mesmo vestido da noite anterior, porém completamente danificado.
Estava no meio de uma fileira de prisioneiros que subiam uma rampa de madeira
para entrar no navio que a levaria para Londres. Eu tive outra chance, não
podia desperdiça-la.
- Senhor, vamos abandonar nossos companheiros? – abaixei
minha luneta e me virei ao capitão.
- Eles não passam de um bando de miseráveis desafortunados!
– o capitão descia do castelo de popa para o convés onde estava a maioria dos
marujos – E todos aqui seriam se não tivessem subido a bordo do Confidente a
tempo! – ele encarava e intimidava cada presente enquanto dizia.
- Mas, capitão! Temos que fazer alguma coisa! Temos que
salvá-los!
- E qual é o seu plano, Micaela? – Bromberg disse
lentamente, desafiador – Quer que todos nós arrisquemos nossas vidas a troco de
quem? Salvar indigentes de um navio que vai levá-los a prisão ou a forca?
Toda a tripulação se virou para mim. Bromberg aproximou-se
até que nossos rostos estivessem bem próximos. Podia sentir os fios de sua
desgrenhada barba castanha e o hálito fétido expelido por suas narinas.
- Não, você não faria isso, Micaela. Por ninguém de
Mirrorport. Tem alguém que está naquele barco e que te faz se importar, não é
mesmo? – dizia lentamente como se seu raciocínio estivesse a ponto de lhe
revelar uma grande descoberta – Mas quem teria feito tal prodígio? Todos aos
postos de trabalho – disse firme aos marujos – Vamos para Calais.
***
O capitão se recusou manter o curso durante a noite e a
madrugada, alegando os perigos do canal e o estresse da tripulação. Idiota.
Talvez se tivesse feito isso teria alcançado Calais a tempo, ou ao menos
ultrapassado a metade da distância.
Reuni os homens no convés de carga. Tinha um dom persuasivo
ótimo quando a situação era amotinar a tripulação. Todos no navio estariam
dormindo a essa hora, com exceção dos vigias.
- Por que deveríamos nos amotinar? – indagou Estevan,
carregado do sotaque espanhol.
- Bromberg é da velha guarda de Mirrorport – comecei.
Preparei um ambiente sinistro para convencer os homens. Apenas uma lamparina
iluminava o pequeno espaço onde dezenas se exprimiam ao redor de uma mesa – Ele
tinha muitos amigos e inimigos que foram mortos ou capturados pelos soldados
ingleses. Por que ele os abandonaria à própria sorte?
Os homens murmuraram entre si sem obter resposta alguma.
- Aí está! – exclamei – Bromberg é um maldito cão do mar.
Ele jamais perderia uma oportunidade, uma brecha que fosse! Não, o capitão não
recuaria em momentos de instabilidade até que as coisas se acalmassem. Algum de
vocês faria isso?
Novamente eles se entreolharam, discutiram e chegaram ao
consenso de, sendo piratas, tentariam se aproveitar da melhor maneira possível
da situação.
- Ah, mas Bromberg também está se aproveitando! Já pararam
para pensar em como o capitão tinha o navio pronto para zarpar exatamente no
instante em que Mirrorport foi atacada?
Essa pergunta matou a todos. Por que ele partiria de
madrugada? E quanta sorte em ser o único navio hábil a escapar durante o
ataque.
- Sim, ele sabia do ataque!
O ruído se elevou. Deixei que eles se espantassem um pouco
antes de pedir por silêncio ou seriamos descobertos. Eu os tinha na palma da mão!
Todos se viraram para mim para ouvir o que dizia.
- Bromberg está a serviço dos ingleses que invadiram
Mirrorport. A maioria de nós nesse navio é novata, somente o contramestre e uns
poucos membros próximos ao capitão estão com ele há tempos. Senhores, atenção:
tudo isso se trata de uma armadilha.
Impactados, os próprios marujos já criavam teorias e
especulações, dando credibilidade às próprias fantasias. Eu não sabia de nada
do que estava dizendo, não na íntegra. Mas associava alguns fatos secretamente
em minha mente, e sabia fazê-los seguir-me em um motim.
Como uma rasteira na noite, os veteranos e Bromberg foram
surpreendidos e capturados durante o sono, e o controle do Confidente foi
confiado a mim!
- Coloquem ele na prancha! – Estevan gritava eufórico aos
seus companheiros, com o anterior capitão do navio amarrado ao mastro
principal.
- Não! – interferi – Coloquem ele na prisão! O
interrogaremos e descobriremos seus planos antes disso!
- Micaela sua mentirosa desgraçada! Ardilosa! – Bromberg
berrava em seus acessos de fúria. Foi prontamente amordaçado antes que pudesse
fazer minha tripulação pensar e perceber o golpe.
- Quanto aos veteranos – desembainhei o sabre e apontei para
os prisioneiros do alto do castelo de popa, para causar efeito – Eu, espirituosa
e benignamente, ofereço-lhes uma redenção: sirvam-me honrosamente com o melhor
de suas capacidades, ou entreguem suas vidas fracassadas a Deus e ao mar!
Bromberg, apesar de se cercar de gente competente, não sabia
manipulá-los ao ponto de se tornarem fanáticos. Nenhuma morte, um navio, uma
tripulação e membros experientes em apenas uma noite! Sério, não tem pra mim.
Ao nascer do sol, o Confidente alterava seu curso de volta à
costa inglesa. Ao invés de pararmos em Calais, o faríamos em Dover, de onde eu
encontraria o rastro daquele navio onde estava Carmensita e procuraria respostas a algumas perguntas. Até onde eu
estava disposta a ir por aquela garota?
***
A taverna de Alfred Madbeg, ou Alfred Ricocheteio como
chamávamos, era exótica. O então pirata extasiou-se quando descobriu Xangai. A
maioria da tripulação não gostou. Na verdade, estavam loucos para retornar para
a Inglaterra. Lá ele conheceu uma mulher, e logo se apaixonou por ela. Não me
recordo o nome. Não bastou muito para que gente barra pesada tentasse matar o
pobre pirata. Alfred não conseguiu levar a mulher consigo. Na fuga, um dos
chineses que o perseguia atirou com a pistola que Alfred deixou cair. A péssima
pontaria do homem foi compensada com um golpe de sorte. O tiro, que passaria
longe do pirata, ricocheteou em um cano de metal e atingiu a perna, tornando
Alfred um coxo. Ele largou a pirataria e abriu essa taverna em Dover, que
decorou como um ambiente chinês.
- Micaela! – gritou logo que me viu entrar, junto de
Estevan. Parecia surpreso a me ver. Avançamos até o balcão para que ele não se
incomodasse em arrastar sua perna ruim pelo assoalho.
Não tinha muitas pessoas no local. Apenas um cômodo
retangular com diversas mesas, lanternas chinesas na parede, uma única porta
entre duas vidraças e diversas placas de madeira pirogravados ideogramas de boa
sorte suspensos no ar.
- Preciso de informações, Alfred – fui direto ao ponto. O
esquelético homem deixava transparecer um rosto de pleno desagrado e um sorriso
forçado.
- O que precisa saber? – disse depois de gaguejar um bocado
enquanto coçava compulsivamente a barba preta repleta de falhas.
- Um navio carregado de prisioneiros de Mirrorport passou
por aqui recentemente. Preciso saber se parou aqui, qual a tripulação, como
estão armados e em quanto tempo chegarão a Londres.
- E o que sabe do ataque a Mirrorport? – indagou Estevan,
carregado de sotaque.
O espanhol era um homem alto, forte e atlético. Tinha os
ombros e o peitoral largos. Os olhos eram pequenos e castanhos por baixo de
sobrancelhas anguladas e arqueadas.
Cultivava um espesso bigode handlebar.
O rosto disforme de Alfred, em especial seu grande nariz
adunco, mudou de forma diversas vezes, como se estivesse uma provação de
limões.
- O navio se chama Condestável. É uma barcaça antiga agora
equipada com propulsão a vapor. Há muito espaço para prisioneiros lá dentro. O
capitão é um homem cruel, Micaela. Já o chamam de Charon, pelas costas. A tripulação é
reduzida, mas dizem ter sido escolhida a dedo pelo capitão.
- Isso explica porque não o pegamos primeiro – raciocinei –
Movido a vapor ele pode navegar a noite inteira.
- Há um homem novo no comando da RAN – Alfred dizia em voz
baixa, mais covarde do que de costume – Há quanto tempo está em na cidade?
- Há dois dias, por que?
- Você precisa sair daqui o quanto antes Micaela!
O sininho anunciou a entrada de algumas pessoas na taverna.
Não me virei. Continuei a fitar Alfred nos olhos. O coxo olhou por cima de meu
ombro para ver de quem se tratava e disse emprestando sua voz animada e
receptiva novamente:
- Sentem-se! Não posso permitir que saiam daqui sem provarem
a minha famosa sopa de macarrão!
O homem magricela riu alto nervosamente e entrou na cozinha.
Eu e Estevan nos sentamos à mesa mais próxima do balcão. O espanhol cerrou o
cenho enquanto estralava os fortes dedos.
- O que estamos fazendo parados aqui? – ele perguntou baixo
para que somente eu ouvisse – Não nos disse para desaparecer de Dover?
- Não conseguiremos sair – disse mantendo minha voz calma –
Os homens que entraram aqui tentarão nos pegar.
Apontei discretamente para algumas mesas. Três sentaram-se
nas mesas do fundo, iriam bloquear as saída. Outros dois buscaram a mesa mais
próxima a nossa, tentariam nos abordar primeiro. Além disso, três pessoas em
mesas distintas liam a mesma página de jornal desde que entramos. Provavelmente
tinha alguém na cozinha que nos denunciou. Não poderíamos sair por lá.
Estevan não demonstrou medo, mas a situação não estava nada
fácil. Ele cuidadosamente armou uma das pistolas que carregava no cinto.
Os dois na mesa mais próxima trocaram alguns sinais com as
mãos e com a cabeça. Os homens não se vestiam como a maioria. Eram ex-soldados
expulsos por mau comportamento, no mínimo. Botas e luvas escuras e surradas. A
maioria usava largos chapéus, camisas claras e coletes. Eles sabiam esconder
muito bem as armas, eu sequer conseguia ver onde estavam suas facas.
Um dos homens da mesa próxima se levantou. Alfred
Ricocheteio estava morto. Ele avançou até nossa mesa, apoiou as duas mãos
enluvadas sobre ela, olhou-me nos olhos por alguns instantes e se virou para
Estevan. Pow!
O espanhol disparou sua arma por debaixo da mesa atingindo
em cheio as bolas do desgraçado!
O homem se curvou sobre a mesa levando as mãos sobre o
membro amputado, olhos saltados das órbitas e boca arreganhada, e recebeu um
gancho de esquerda enquanto me levantava imediatamente! Saquei o revólver
escondido nas costas e atirei contra seu comparsa por cima do ombro. Estevan
virou a mesa e saltamos para trás do balcão. Os fregueses correram desesperados
para a única saída quando o caos começou.
Nossos inimigos reagiram violentamente e responderam com uma
saraivada de tiros. Estevan disparou sua segunda pistola sobre o balcão sem mirar
e acertou uma das janelas. Os assassinos atiravam sem brecha contra o balcão de
madeira, fazendo-o em lascas.
- Eles estão usando revólveres! – Estevan ponderou – Essas
pistolas são lentas para responder ao fogo!
Chutei debaixo do balcão duas vezes com força e uma tábua de
madeira cedeu, revelando uma espingarda em um compartimento secreto.
- Pegue isso! Pode dar oito disparos antes de recarregar!
Rearmei meu revólver e disparei sem ver por cima do balcão.
- Tem um espelho convexo na parede atrás deles! Use ele para
acertá-los! Eu tomo conta da cozinha!
Preparei meu revólver para mais um disparo e engatinhei
através de um véu que separava os ambientes. Tão logo entrei me protegi atrás
da parede. Ouvia somente os disparos incessantes no salão que abandonei.
Sentada no chão ao lado de um armário não via ninguém na cozinha.
A cozinha era composta por fogões a uma parede, pia e
armários na parede oposta, o acesso ao salão por aonde vim, uma saída na parede
oposta a essa, e uma grande mesa de madeira no centro repleta de alimentos em
preparo e ferramentas. Panelas ferviam no fogo e uma torneira foi esquecida
aberta. Logo, água escorreria pelo chão.
Levantei e estiquei o braço apontando a arma andando na direção
da porta de saída. Um homem a guardava, mas não percebeu minha presença a tempo
de reagir. Disparei contra seu peito. Fui surpreendida por outro comparsa que
me desarmou com um golpe de panela.
Paralisada pela dor na mão, retrocedi alguns passos e
escorreguei no chão molhado caindo de costas. Meu adversário armou-se de um
cutelo que estava em cima da mesa, mas antes que ele pudesse desferir o golpe
mortal rolei por baixo da mesa na direção do fogão! Mal pude me levantar e ele
empurrou a pesada mesa tentando me prender, entretanto fui ágil e coloquei-me
sobre o móvel habilmente. O homem avançou na minha direção com o cutelo. Agindo
sem pensar, peguei uma das panelas que fervia no fogo com as duas mãos,
rodopiei ao redor de mim mesma e arremessei contra o cretino! Ele gritava com o
rosto completamente queimado e corria desesperado. O espanhol surgiu nesse
momento e, com um único e preciso disparo da espingarda, acabou com o
sofrimento do queimado.
- Vamos embora daqui! – fugimos pela porta do salão.
Vários haviam fugido de Estevan quando ficaram sem munição. Mais
um amigo havia morrido por minha culpa. Eu não tinha todas as respostas que
queria. Mas sabia que Dover não era um local a salvo para mim agora. Sabia que
alguém estava tentando me matar e estava empenhado nisso. Tinha cada vez mais
certeza que o ataque a Mirrorport estava ligado a mim. Sabia onde estava Carmensita e que os perigos que
enfrentaria seriam muito maiores do que qualquer um que eu já havia enfrentado.
E sabia, acima de tudo, que eu não possuía mais um porto seguro. Sabia que não
podia mais voltar atrás.
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