Pendurei um casaco em um gancho na minha cabine. Coloquei um
par de botas sob ele. Calças, meias, luvas, tudo dobrado sobre um baú. O
Confidente balançava e rangia periodicamente ao movimento da maré. Trovejava
havia horas naquela noite, mas nenhuma gota de água havia caído ainda. Aguardei
por uma tempestade que só viria horas depois.
Sentei-me abruptamente na cadeira. Meu livro estava em
posição bem a minha frente. Trancara a porta previamente. Afastei a garrafa de
vinho e a caneca e aproximei o lampião de mim sobre a mesa. Havia um bom tempo
que eu não lia aquele livro.
Respirei profundamente algumas vezes. Minhas mãos suavam,
estavam geladas. Meu coração acelerou, martelava. Eu sabia o que podia esperar
daquilo tudo. Sabia o que sentia. Medo. Poderiam questionar minha sanidade em
insistir com aquela tormenta, mas era preciso. Eu buscava respostas.
Lenta e hesitantemente, levei a mão até a uma das bordas do
livro. Abri.
Trevas. Tudo deixou de existir. Eu deixei de existir. Tudo
era atemporal. Mergulhei em um rodamoinho de sons, cheiros e lembranças fora de
época e lugar.
***
Minhas mãos suavam, minha respiração estava ofegante. Podia
sentir o coração palpitando no peito. Meus pensamentos estavam em caos, mas eu
sorria ainda assim. Eu queria, mas não conseguia olhar para o rosto de Tom.
Estávamos à beira do riacho pedregoso, próximos da ponte de
madeira. O vento batia no meu rosto e parecia que estava ainda mais frio.
Algumas aves voaram alguns metros acima de nossas cabeças e se enfiaram entre
os pinheiros na outra margem.
Tom atirou sua última pedrinha ao riacho. Olhei para suas
mãos. Estavam inquietas, buscando algo para segurar. Já haviam se passados
quinze minutos desde que ele me trouxe até aqui embaixo. Falava lenta e
nervosamente sobre alguns assuntos com pouca profundidade. Tentava chegar ao
ponto, porém não conseguia.
Eu sabia o que ele queria dizer, o que queria fazer me
trazendo ali. Éramos crianças de apenas sete anos. Tom tinha sido meu amigo desde
que se mudou com sua mãe para ser nossos vizinhos. Já se fazia dois anos isso.
Me comichava por dentro. Queria ouvir de Tom que gostava de
mim e queria dizer a ele que gostava dele também! Ele fora meu primeiro amigo.
Era o único que me seguia nas minhas aventuras no bosque de pinheiros mesmo que
isso lhe custasse voltar para casa todo arranhado dos galhos das árvores. Eu
vira, escondida, ele apanhar de Brad e sua turma quando me insultaram e ele me
defendera. Eu fora a única pessoa a quem ele mostrara a coleção de aranhas,
escorpiões e cobras que havia sido de seu pai. E agora estávamos ali, sentados
na relva à margem do riacho rochoso.
Ouvi um carro se aproximar e parar lá em cima da colina. Não
me importei na hora quem estaria visitando meus avós ou meus pais. Eu só queria
que Tom me dissesse logo que gostava de mim!
O céu estava completamente nublado. Eu gostava assim. Os
ventos se tornaram mais intensos e folhas secas nos atingiram. Risos. Tom me
olhou nervosamente. Quando nossos olhos se encontraram, ele congelou. Os
cabelos loiros dele vinham na minha direção, estavam loucos para tocar os meus.
Seus olhos azuis brilharam. Percebi sua pupila dilatar. Nossos dois corpos
permaneceram estáticos por algum tempo, cessando a conversando que não havia tido
importância alguma até aquele momento. Estávamos bobos, olhando um pro outro.
- Micaela, eu – lembro-me perfeitamente de sua voz um pouco
ríspida.
Tom nunca terminou a frase. Gritos de uma discussão vindos
da casa no alto da colina nos assustaram.
Os ventos se tornaram mais fortes e ouvi trovoadas que nunca
ocorreram. Ele estava começando de novo. Era mais do que uma lembrança. Eu
revivia aquele momento. Tive aquela sensação de quando percebemos que estamos
sonhando, só que muito mais intensa. Mas eu não acordava como acontece
normalmente. Eu sabia o que ia acontecer. Eu queria desesperadamente acordar,
mas não conseguia! Eu não queria ver aquilo tudo de novo, não! Aquele universo
se tornava instável, quebradiço. As imagens que eu via deixavam rastro, os sons
ecoavam.
Da margem do riacho conseguíamos ver apenas um pedaço do
telhado da casinha. Vimos dois vultos saindo pelo alpendre, discutindo
violentamente. Tom disse que ia ver o que estava acontecendo.
- Tom, não! Não vá! Tom! – eu tentava impedi-lo, mas era
incapaz.
Iria acontecer tudo novamente e eu não conseguia impedir. Corri
atrás de Tom subindo a colina, gritando o nome dele e pedindo para esperar. Eu
não havia feito isso, nada iria mudar.
Chegamos perto do topo. Meu pai discutia com o Coronel
Woods, gritava a plenos pulmões, enquanto minha mãe tentava o conter pelas
costas. Woods recuou para próximo do jipe do exército. Os dois soldados que
estavam lá se colocaram em prontidão, alertas aos movimentos do meu pai. Um
deles engatilhara o ferrolho do rifle, preparando a primeira bala, e foi
impedido por Woods. Meus avós surgiram no alpendre, assustados com a cena. Eu e
Tom nos escondemos atrás de um velho tronco caído, ninguém nos viu.
- Fique aqui Micaela, não se aproxime mais – foram as
últimas palavras de Tom. Ele avançou mais alguns passos e foi observar tudo se
esgueirando atrás de uma parede da casa, próximo demais do conflito.
Meu pai gritava contra Woods apontando o dedo
opressivamente. Woods se manteve contido. Minha mãe o tentava conter como se previsse
o que ia ocorrer. Foi tudo muito rápido, mas me lembro com riqueza de detalhes.
Meu pai sacou o sabre. O soldado que já havia engatilhado a arma apontou o
rifle para ele. Minha mãe abraçou meu pai pela frente, para lhe proteger.
Woods, em um berro de negação, tentou impedir o tiro. O rifle teve a pontaria
desviada, mas ainda assim disparou. Dois segundos após o som da explosão,
ouviu-se o da queda de um corpo ao chão. Eles se viraram para trás. Ninguém
além de mim sabia que ele estava lá até aquele momento. Tom havia sido alvejado
no peito.
O sabre precipitou até o solo. Os olhos de meu pai
arregalaram-se, vi espanto em seu rosto. Ele e minha mãe correram até o corpo.
Coronel Woods fitou o autor do disparo furioso, mas não tomou nenhuma atitude
na nossa frente. O susto foi muito forte para minha avó, que começou a passar
mal e meu avô a levou para dentro de casa.
Não havia mais esperança para Tom. A bala atravessou o
coração dele. Seu corpo fraco não pôde aguentar. Sangue quente e claro
transbordou de seu peito para além das vestes simplórias, encharcou a grama de
vermelho. O menino agonizava, respirando cada vez mais rápido e fraco, como um
peixe que se tira da água, até finalmente cessar. Os olhos arregalados perderam
o brilho rapidamente, estáticos. Ninguém podia fazer nada. O corpo inerte de
Tom jazia no solo.
Só então eles me viram, agachada atrás do velho tronco
apodrecido, chorando quieta. Assisti a tudo. Assisti à morte do meu primeiro e
melhor amigo. Assisti à morte do meu primeiro amor de infância. Assisti a morte
do jovem Tom.
***
Retornar é como subir à superfície de um lago depois se
passar minutos intermináveis mergulhada. É como ter que respirar o ar quando
seus pulmões estão cheios de água.
O suor fez a roupa colar-se ao meu corpo. Meus olhos estavam
embaçados e ardiam como se há muito não se abrissem. Ouvia trovoadas intensas
e agressivas gotas de chuvas atingiam uma escotilha. A tempestade começara em
algum momento. O Confidente oscilava para cima e para baixo enjoativamente.
Apenas uma fagulha restava no lampião sobre a mesa.
O livro nunca havia me trazido aquela lembrança. Foi
horrível ver Tom morrer diante de mim novamente. O livro sempre fazia isso.
Iludia-me com momentos de profunda alegria antes das grandes tragédias.
O que ele queria me revelar com aquilo? Estaria se referindo
à Carmensita? Será que eu a colocaria
em risco ao me relacionar com ela? Essas perguntas me abalaram. Senti-me
desamparada. Eu havia apenas embarcado nessa jornada para salvá-la, e estaria
assim colocando-a em risco? Mas que merda! O que eu poderia fazer então?
Com a última fagulha do lampião se esvaindo, retirei minhas
roupas e me deitei em minha rede. A cabine estava muito escura, iluminada
apenas por flashes repentinos de raios durante a tempestade.
Richard, que texto envolvendo... ao mesmo tempo dramático e reflexivo. Gostei muito, parabéns! Estou te seguindo em seu blog tb!
ResponderExcluirAbraço