sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Capítulo Sete: Mergulho em Pesadelos

Pendurei um casaco em um gancho na minha cabine. Coloquei um par de botas sob ele. Calças, meias, luvas, tudo dobrado sobre um baú. O Confidente balançava e rangia periodicamente ao movimento da maré. Trovejava havia horas naquela noite, mas nenhuma gota de água havia caído ainda. Aguardei por uma tempestade que só viria horas depois.

Sentei-me abruptamente na cadeira. Meu livro estava em posição bem a minha frente. Trancara a porta previamente. Afastei a garrafa de vinho e a caneca e aproximei o lampião de mim sobre a mesa. Havia um bom tempo que eu não lia aquele livro.

Respirei profundamente algumas vezes. Minhas mãos suavam, estavam geladas. Meu coração acelerou, martelava. Eu sabia o que podia esperar daquilo tudo. Sabia o que sentia. Medo. Poderiam questionar minha sanidade em insistir com aquela tormenta, mas era preciso. Eu buscava respostas.

Lenta e hesitantemente, levei a mão até a uma das bordas do livro. Abri.

Trevas. Tudo deixou de existir. Eu deixei de existir. Tudo era atemporal. Mergulhei em um rodamoinho de sons, cheiros e lembranças fora de época e lugar.

***

Minhas mãos suavam, minha respiração estava ofegante. Podia sentir o coração palpitando no peito. Meus pensamentos estavam em caos, mas eu sorria ainda assim. Eu queria, mas não conseguia olhar para o rosto de Tom.

Estávamos à beira do riacho pedregoso, próximos da ponte de madeira. O vento batia no meu rosto e parecia que estava ainda mais frio. Algumas aves voaram alguns metros acima de nossas cabeças e se enfiaram entre os pinheiros na outra margem.

Tom atirou sua última pedrinha ao riacho. Olhei para suas mãos. Estavam inquietas, buscando algo para segurar. Já haviam se passados quinze minutos desde que ele me trouxe até aqui embaixo. Falava lenta e nervosamente sobre alguns assuntos com pouca profundidade. Tentava chegar ao ponto, porém não conseguia.

Eu sabia o que ele queria dizer, o que queria fazer me trazendo ali. Éramos crianças de apenas sete anos. Tom tinha sido meu amigo desde que se mudou com sua mãe para ser nossos vizinhos. Já se fazia dois anos isso. 

Me comichava por dentro. Queria ouvir de Tom que gostava de mim e queria dizer a ele que gostava dele também! Ele fora meu primeiro amigo. Era o único que me seguia nas minhas aventuras no bosque de pinheiros mesmo que isso lhe custasse voltar para casa todo arranhado dos galhos das árvores. Eu vira, escondida, ele apanhar de Brad e sua turma quando me insultaram e ele me defendera. Eu fora a única pessoa a quem ele mostrara a coleção de aranhas, escorpiões e cobras que havia sido de seu pai. E agora estávamos ali, sentados na relva à margem do riacho rochoso.

Ouvi um carro se aproximar e parar lá em cima da colina. Não me importei na hora quem estaria visitando meus avós ou meus pais. Eu só queria que Tom me dissesse logo que gostava de mim!

O céu estava completamente nublado. Eu gostava assim. Os ventos se tornaram mais intensos e folhas secas nos atingiram. Risos. Tom me olhou nervosamente. Quando nossos olhos se encontraram, ele congelou. Os cabelos loiros dele vinham na minha direção, estavam loucos para tocar os meus. Seus olhos azuis brilharam. Percebi sua pupila dilatar. Nossos dois corpos permaneceram estáticos por algum tempo, cessando a conversando que não havia tido importância alguma até aquele momento. Estávamos bobos, olhando um pro outro.

- Micaela, eu – lembro-me perfeitamente de sua voz um pouco ríspida.

Tom nunca terminou a frase. Gritos de uma discussão vindos da casa no alto da colina nos assustaram.

Os ventos se tornaram mais fortes e ouvi trovoadas que nunca ocorreram. Ele estava começando de novo. Era mais do que uma lembrança. Eu revivia aquele momento. Tive aquela sensação de quando percebemos que estamos sonhando, só que muito mais intensa. Mas eu não acordava como acontece normalmente. Eu sabia o que ia acontecer. Eu queria desesperadamente acordar, mas não conseguia! Eu não queria ver aquilo tudo de novo, não! Aquele universo se tornava instável, quebradiço. As imagens que eu via deixavam rastro, os sons ecoavam.

Da margem do riacho conseguíamos ver apenas um pedaço do telhado da casinha. Vimos dois vultos saindo pelo alpendre, discutindo violentamente. Tom disse que ia ver o que estava acontecendo.

- Tom, não! Não vá! Tom! – eu tentava impedi-lo, mas era incapaz.

Iria acontecer tudo novamente e eu não conseguia impedir. Corri atrás de Tom subindo a colina, gritando o nome dele e pedindo para esperar. Eu não havia feito isso, nada iria mudar.

Chegamos perto do topo. Meu pai discutia com o Coronel Woods, gritava a plenos pulmões, enquanto minha mãe tentava o conter pelas costas. Woods recuou para próximo do jipe do exército. Os dois soldados que estavam lá se colocaram em prontidão, alertas aos movimentos do meu pai. Um deles engatilhara o ferrolho do rifle, preparando a primeira bala, e foi impedido por Woods. Meus avós surgiram no alpendre, assustados com a cena. Eu e Tom nos escondemos atrás de um velho tronco caído, ninguém nos viu.

- Fique aqui Micaela, não se aproxime mais – foram as últimas palavras de Tom. Ele avançou mais alguns passos e foi observar tudo se esgueirando atrás de uma parede da casa, próximo demais do conflito.

Meu pai gritava contra Woods apontando o dedo opressivamente. Woods se manteve contido. Minha mãe o tentava conter como se previsse o que ia ocorrer. Foi tudo muito rápido, mas me lembro com riqueza de detalhes. Meu pai sacou o sabre. O soldado que já havia engatilhado a arma apontou o rifle para ele. Minha mãe abraçou meu pai pela frente, para lhe proteger. Woods, em um berro de negação, tentou impedir o tiro. O rifle teve a pontaria desviada, mas ainda assim disparou. Dois segundos após o som da explosão, ouviu-se o da queda de um corpo ao chão. Eles se viraram para trás. Ninguém além de mim sabia que ele estava lá até aquele momento. Tom havia sido alvejado no peito.

O sabre precipitou até o solo. Os olhos de meu pai arregalaram-se, vi espanto em seu rosto. Ele e minha mãe correram até o corpo. Coronel Woods fitou o autor do disparo furioso, mas não tomou nenhuma atitude na nossa frente. O susto foi muito forte para minha avó, que começou a passar mal e meu avô a levou para dentro de casa.

Não havia mais esperança para Tom. A bala atravessou o coração dele. Seu corpo fraco não pôde aguentar. Sangue quente e claro transbordou de seu peito para além das vestes simplórias, encharcou a grama de vermelho. O menino agonizava, respirando cada vez mais rápido e fraco, como um peixe que se tira da água, até finalmente cessar. Os olhos arregalados perderam o brilho rapidamente, estáticos. Ninguém podia fazer nada. O corpo inerte de Tom jazia no solo.

Só então eles me viram, agachada atrás do velho tronco apodrecido, chorando quieta. Assisti a tudo. Assisti à morte do meu primeiro e melhor amigo. Assisti à morte do meu primeiro amor de infância. Assisti a morte do jovem Tom.

***

Retornar é como subir à superfície de um lago depois se passar minutos intermináveis mergulhada. É como ter que respirar o ar quando seus pulmões estão cheios de água.

O suor fez a roupa colar-se ao meu corpo. Meus olhos estavam embaçados e ardiam como se há muito não se abrissem. Ouvia trovoadas intensas e agressivas gotas de chuvas atingiam uma escotilha. A tempestade começara em algum momento. O Confidente oscilava para cima e para baixo enjoativamente. Apenas uma fagulha restava no lampião sobre a mesa.

O livro nunca havia me trazido aquela lembrança. Foi horrível ver Tom morrer diante de mim novamente. O livro sempre fazia isso. Iludia-me com momentos de profunda alegria antes das grandes tragédias.

O que ele queria me revelar com aquilo? Estaria se referindo à Carmensita? Será que eu a colocaria em risco ao me relacionar com ela? Essas perguntas me abalaram. Senti-me desamparada. Eu havia apenas embarcado nessa jornada para salvá-la, e estaria assim colocando-a em risco? Mas que merda! O que eu poderia fazer então?

Com a última fagulha do lampião se esvaindo, retirei minhas roupas e me deitei em minha rede. A cabine estava muito escura, iluminada apenas por flashes repentinos de raios durante a tempestade.

Entreguei minhas dúvidas e incertezas aos sonhos, que por sinal não foram muito bons.

Um comentário:

  1. Richard, que texto envolvendo... ao mesmo tempo dramático e reflexivo. Gostei muito, parabéns! Estou te seguindo em seu blog tb!

    Abraço

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