Esqueci de me apresentar. Meu nome é Micaela Fontes. Agora
você já sabe
Mirrorport, lugar conhecido. Nada como sujar as botas por
suas ruas enlameadas e visitar bons amigos.
- Outro navio? Está louca, Micaela?! O que aconteceu com o
Sloup? Eu acabei de te emprestar!
Como eu odeio gente mesquinha. E Quarterbooty era esse tipo
de gente.
- Sloup está fora da jogada, McTravis me encontrou. Mas isso
não é importante agora, estive pensando em planos grandes.
- Planos grandes? Grandes são as dívidas que tem comigo!
Esse é o terceiro navio voador que te empresto e você destrói!
O Estopim era o
nome da taverna de Quarterbooty naquela época ainda. Uns anos mais tarde foi
aglomerada ao conjunto de galpões das docas. O gordo vestia-se diferente de
nós, com folgados calções agarrados nos tornozelos e um colete aberto e sem
mangas, de um tom claro como sorvete de creme, contrastando com sua pele
escura. Quarterbooty era um maldito contrabandista que eu ajudei a fugir da
prisão uma vez. Tudo bem que ele só foi parar na prisão por minha culpa, mas
isso é irrelevante.
- Escuta Quarterbooty. Eu preciso de um navio novo. E
McTravis não será mais um problema. Só preciso que me arranje mais um navio e
eu lhe pagarei o custo dos outros três.
- Esqueça! Seu débito comigo encerra nossas atividades comerciais.
Obviamente, eu lhe apresentei argumentos racionais dotada de
paz de espírito que o fizesse reconsiderar sua posição e me apoiar dada as
circunstâncias:
- Vai se ferrar!
Quarterbooty não era o único homem que tinha navios voadores
em Mirrorport.
Mirrorport era uma cidade não muito grande, um entreposto
para navios que vinham de Londres em direção à Normandia, tomada por
contrabandistas, piratas e a escória dos mares e dos ares. Um lugar que eu
podia chamar de lar.
Havia conhecidos que eu podia cobrar ainda, como o velho
Dave Cavacovas, Foster Duque, Amigo Terry e outros.
- Morreu? De que?
- O tornozelo ficou enroscado na corda da âncora quando
desciam ela na água – Tia Maria, viúva desdentada de Dave Cavacovas, me
informava.
- Ele me devia cinco libras!
- A mim também! E à metade de Mirrorport.
Como alguém pode morrer sem pagar suas dívidas? Que tipo de
egoísmo mais doentio.
- Onde está Foster Duque?
- No inferno, provavelmente – foi a vez de Jack Boiafria,
irmão do taverneiro Byron King, da Boteca, amigo pessoal de Foster me responder
– McTravis caçou ele até a morte.
- Alguma notícia do Amigo Terry? Não me diga que ele está
morto também!
Amigo Bill não respondeu.
- Tá certo, me diga como ele partiu dessa.
- Foi enforcado pela RAN.
Meu Deus! Qual o problema das pessoas em pagarem as dívidas
que me devem? Não posso comprar um navio voador por aí sem dinheiro! Não tinha
jeito. Eu sabia que só havia um lugar – uma pessoa – que pudesse me ajudar
agora. Eu me sentia péssima de ter que ir lá. Estava intimidada, mas não havia
outra saída.
***
O pequeno escritório não tinha janelas ou entradas de ar
visíveis. Era escuro, úmido e apenas uma lâmpada elétrica iluminava – mal – o
lugar. Um ventilador velho e sem uso empilhava poeira encima de um armário de
metal atrás do balcão. Barris de madeira próximos das paredes serviam de
assentos, sei lá. No ar pairava a angústia acumulada trazida por todos aqueles
que, assim como eu, tinha como destino final o escritório de Anthony Woods – o
agiota.
Tão logo entrei, a porta fechou-se sozinha atrás de mim. Um
senhor, pai de família, assassino, tanto faz, despejava cédulas do balcão a um
saco preto. Jamais se verá outro rosto tão angustiado por receber tamanha
quantia de dinheiro. O valor daquelas notas não era o mesmo das ganhadas pelo
suor do trabalho, era muito mais. O saco, irônico, era cortesia de Woods.
Acompanhei a trajetória do homem ao deixar o local. Anthony soou uma campainha,
colocando a mim na posição do sujeito que tinha acabado de observar.
- Preciso de dinheiro, Anthony.
- É claro que precisa. Acha que alguém vem aqui apenas para
visitar um velho amigo? – sua voz era firme e profunda.
Eu não ousaria enfrentar aquele homem. O topo dos seus
oitenta anos reduziu-lhe a massa e a altura, mas um retrato atrás do balcão
recordava a todos o coronel do exército britânico que ele havia sido. O rosto
jovem sorria sedutor às meninas, nada de barba ou bigode, sobrancelhas fortes e
bem definidas, olhar afiado como o das águias. Linhas retas faziam o contorno
de seu rosto.
- Não vou lhe emprestar dinheiro, Micaela, nem que me
devolvesse em dobro. Você não irá me pagar.
- Por favor – minha voz falhava, a garganta doía – Não viria
até o senhor se não tivesse outra alternativa.
- Você ergueu essa muralha, Micaela – ele inclinou-se em sua
cadeira estofada e apoiou os cotovelos no balcão – Não consegue ver que a
maneira como tem levado as coisas te trouxe até aqui?
Recolhi-me na cadeira. Senti como se pimenta tivesse caído
em meus olhos. O ar me sufocava. Não era o dinheiro ou a necessidade que me
faziam assim. Era aquele homem. Às vezes julgava que ele podia ser pior que o
meu livro.
Anthony reclinou-se e sua cadeira chiou. Estalos metálicos.
- Sabe que por você não haveria juros ou multa. Se não vivesse
como tem vivido eu te daria o dinheiro. E se não vivesse como tem vivido não
precisaria do dinheiro e não estaria aqui – e o que Anthony dizia não tinha
nada a ver com administrar bem dinheiro.
Alguém entrou no escritório. Anthony não me permitiu mais
tempo. Soou sua campainha. As lágrimas que não transbordaram pelos olhos
escorreram para dentro e regaram uma raiva crescente, súbita. A vontade surgiu
de pegar aquela maldita campainha e arremessar contra a parede! Não fiz isso.
Queria mostrar que ele estava errado, que não me conhecia como pensava.
Levantei o corpo e a cabeça e saí a passos determinados.
***
A brisa vinda do mar me recompôs mais que fisicamente. Sair
daquela sala abafada me arejou os pulmões. Toras de madeira formavam um caminho
acima das rochas, e além delas o mar. Os cabelos ao vento transportavam-me para
o meu mundo acima do mar e das nuvens, onde o horizonte se torna ainda mais
amplo.
Entardecia, voltei a caminhar. Ainda precisava de um lugar
para passar essa e quantas noites fossem em Mirrorport. O abalo em minha cabeça
baixou a guarda de meus sentidos, pois só agora pude perceber que um homem me
seguia. Antes que eu pudesse lhe dar as boas recepções, ele chamou por meu
nome.
- Você é a que chamam por Micaela? Estaria interessada em um
trabalho?
O homem era alto, tinha a pele branca o que revelava que não
era daqui – os de Mirrorport tinham a pele bronzeada – olhos verdes como
esmeralda, não tinha barba ou bigode, vestia-se como um lorde inglês, inclusive
a cartola, e exalava um aroma amadeirado. Seu rosto era triangular. Os olhos
eram estreitos assim como seus lábios. O nariz era fino e comprido.
- Há quanto tempo está me seguindo? – perguntei-lhe com
pouca voz.
- Isso altera sua disponibilidade acerca de meu serviço?
O homem era prático. E um tanto atraente também.
- Qual é o serviço? – questionei de uma vez.
- Preciso de uma navegadora em um barco cujo capitão é meu
amigo.
- Navegadora? Como assim navegadora? Eu não faço serviços
menores que o do capitão do navio! E quem precisa de navegadores hoje em dia? Siga
o fluxo dos ventos e mantenha-se alto o suficiente para não tropeçar nas
montanhas!
O homem sorriu e avançou alguns passos. Era magro e calçava
luvas brancas. Definitivamente não era meu tipo, mas se estivesse disponível…
- Não, não, querida Micaela – ele me chamou de querida? – O
navio a que me refiro não voa. Navega. E está ancorado no cais. Creio que seja
um trabalho que não esteja acostumada, mas certamente lhe recompensará
propriamente.
- Você realmente não me conhece, né? – desdenhei – Não
trabalho se não for a capitã do navio – soletrei para ele – Ainda mais um navio
que não voa! Que ideia! Navios voadores são muito mais seguros seja lá o que
quer fazer com eles.
Dei-lhe as costas e voltei a andar. Homens adoram isso.
Agora ele vai me seguir e implorar e me dará o posto de capitania.
- Tudo bem – o quê?! – Não posso mudar suas ambições e
vontades – espere, espere! Você está fazendo isso errado! – O que posso fazer
para ter sua amizade, então?
Parei de andar. Ele não me seguia mais. Virei-me para ele e
respondi com franqueza:
- Pague a conta do alfaiate – sim, o alfaiate iria gostar
disso. Ainda mais depois que peguei a roupa digna de uma capitã e lhe paguei
com as roupas velhas da velha Gertrudes.
Dito, dei-lhe as costas e segui meu caminho, não mais
seguida por aquela figura exótica.
- Se estiver interessada – gritou a mim – Haverá uma festa
na Boca de Lobo hoje à noite! Apareça por lá!
Uma festa? Hmm, talvez fosse bom. A Boca de Lobo era
conhecida mesmo por boas festas, brigas e mortes acidentais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário