sábado, 22 de setembro de 2012

Capítulo Quatro: Porto Seguro - Parte 2

Já que eu não tinha nada melhor pra fazer de noite – nem o que comer, nem onde dormir – fui averiguar se essa tal festa ia acontecer mesmo. As ruas de Mirrorport essa hora da noite eram tomadas pela neblina que subia do Canal da Mancha, escuras e convidativas a assaltos e estupros. Eu mesma já fiz muito isso, mas resisti à tentação de repeti-las.

A taverna estava lotada de imbecis fedendo a sal, suor e cerveja, em seus surrados trajes de marujos, cabelos e barbas desgrenhadas. Não estivessem minhas botas bem afiveladas, elas recusariam a seguir caminho junto dos meus pés, coladas no assoalho. Gaiteiros e músicos menos afinados queriam ter a certeza que seriam ouvidos de Londres. Meretrizes baratas subiam as escadas acompanhadas, e outras não tão baratas assim dançavam pouco vestidas na multidão. Sobre uma grande mesa, javalis, peixes e aves assadas eram devorados pelos festeiros. Barris de cerveja, vinho e rum rolavam pelo local, abastecendo as canecas de todos.

Meu senso investigativo estava sempre desperto. Por isso, após pegar algumas garrafas e pedaços de carne para análise, tratei de descobrir quem o responsável por aquela festança.

Atrás do balcão, Billy Jack Joe, o taverneiro, colocava mais um barril de cerveja a disposição de todos. Ele era muquirana, jamais hospedaria uma festa. Nem que sua sogra morresse e lhe deixasse uma herança milionária.

Mais adiante, bebendo ao balcão e conversando com os bêbados, Conde Andrew em seu fraque preto, cartola e bengala. Impossível, mal tinha dinheiro para sustentar a si próprio. Tanto que se tivesse não estaria aqui.

Ao seu lado, Capitão Wig Gancho Torto, pirata dos ares. Acho que vi um navio voador pirata ancorado acima da Boca de Lobo. Só podia ser ele. Apesar de mau sucedido e azarado, era, dentre os presentes, o que tinha mais chances de promover a festa.

- Newport! – Capitão Wig insistia nessa insanidade – Estou lhe dizendo, Micaela, saqueei Newport!

- E descobriu, acidentalmente, que havia um carregamento secreto de ouro do Banco da Inglaterra indo para a França? Isso é impossível!

- Se fosse impossível não estaria celebrando essa festa, estaria?

Por fora eu não acreditava em tal absurdo. Por dentro eu gritava: por que isso não acontece comigo?

- Micaela – insistência saía daquela boca com poucos, tortos, amarelos e corroídos dentes – Não sou o primeiro pirata a saquear aquele porto. A pobre da cidade já sofreu com isso várias vezes. Eu apenas dei sorte!

- Capitão Wig, a RAN tem fechado o cerco de uns anos pra cá. Mirrorport tem cada vez menos piratas e cada vez mais dívidas não pagas. Conhecidos do senhor mesmo já devem ter sido pegos e enforcados por McTravis ou algum outro capitão. É impossível que eles tenham cometido tamanho erro em deixar um carregamento de ouro sem escolta!

- Não vê? Essa foi a intenção deles! Deixaram seu escolta para não chamar a atenção e passarem despercebidos!

Eu teria continuado a conversa, mas ela tinha que aparecer. Carmensita desfilava entre os homens em seu vestido cor de sangue e bordados negros como se eles não existissem. O decote exibia largamente os seios fartos. Pele branca, macia como o mais suave dos tecidos. Cachos entre o dourado e o ruivo elegantemente arrumados caíam até a metade das costas nuas. Seu olhar sedutor, cor de mel, cruzou com o meu, deixou-me boquiaberta. Os olhos pintados de negro ficavam ainda maiores e mais destacados. Narizinho pequeno, arrebitado. Lábios finos, vermelhos, insinuavam um sorriso sensual. Imaginei o arome de chocolate exalando de seu corpo. Ela deu-me as costas, suave como todos seus movimentos e foi em direção à sacada. Como a garota era provocante. Não ligava que olhassem seus seios expostos, nem com o olhar mais indiscreto e malicioso. Ela gostava. Parecia que fazia tudo isso pra mim, pra me provocar, provocar meus pensamentos. Me deixava confusa, incerta, nervosa. Não conseguia me aproximar dela. E para quê? Que tanto tinha aquela menina que me enfeitiçava e em meus sonhos chamava-me com suas mãos sensuais? Erámos tão diferentes, mesmo que eu nunca tivesse falado com ela, não mais que olhares cruzados e presença nos mesmos ambientes. Ela vestia finos vestidos, enquanto eu usava calças e camisas folgadas e um casaco azul grosso por cima de tudo.

Eu teria dito ao Capitão Wig que discutir sobre o saque de Newport não importava mais. Nem isso eu fiz. Reunia coragem para ir até a sacada conversar com Carmensita. Eu queria isso! Mas não tinha certeza sobre o que sentia, e ela era uma garota! E eu também! Que mundo mais maluco esse! Ela acharia estranho e eu não saberia o que dizer, eu nem sabia o que ia fazer lá! Não sabia por que estava indo atrás dela! Argh! Eu queria martelar minha cabeça e acabar logo com aquilo!

Virei um gole de vinho na esperança de ajudar. Não estava ajudando, mas me fez pensar que eu tinha mais coragem, então valeu a pena. Avancei alguns passos na direção dela. Estava sozinha. Eu tinha que ir antes que chegasse alguém. Talvez fosse melhor deixar tudo isso de lado e esquecer. É o que eu sabia fazer de melhor e tive fazendo isso havia bastante tempo.

E veja o que se tornou. Que se dane, eu iria lá. Não importa o que viesse eu me sentiria melhor depois, pelo menos.

Fui até a sacada. O frio me atingiu primeiro ao deixar o calor da multidão e um lugar fechado. Minhas mãos agarraram firmemente o cercado de madeira que nos impedia de cair contra as rochas, quinze metros abaixo de nós, atingidas violentamente pelas ondas do mar.

Estávamos apenas Carmensita e eu, longe da presença, mas não dos olhares, dos outros. O vento me atingiu pela lateral e arrancou meu chapéu da cabeça, perdendo-se ao mar. Tomada de surpresa, sem saber o que fazer, fiquei rígida ao vê-lo voar e não consegui agir naturalmente. Carmensita seguiu-o com um movimento suave de cabeça e virou-se para mim:

- Seu chapéu! – sua voz é melodiosa, envolvente. Fiquei olhando para seus lábios entreabertos, dentes brancos perfeitos atrás deles – Micaela, não é?

- Sim – gaguejei – meu chapéu – gaguejei mais um pouco – eu… é – só pra fazer mais um pouco de merda.

Carmensita sorriu. Seus olhos brilhavam fixamente nos meus. Ela era um pouco mais baixa do que eu, e eu não era alta. Ela virou-se para o mar, totalmente negro essa hora da noite.

- Está uma noite linda, não é? – me disse. O céu estava repleto de estrelas e poucas nuvens nos observavam.

- Sabe – minhas mãos se tornaram verdadeiras quedas d’água – eu já observo, quero dizer, já vi você por aí há bastante tempo – faltava-me ar para dizer essas palavras. Podia sentir o coração saltando no peito.

- Eu também tenho te observado há algum tempo. Conheço você de vista quando aparece aqui, em Mirrorport.

Pai eterno! Será que ela pensa de mim as mesmas coisas que eu penso dela? E o que será que ela me viu fazer? Eu faço tanta merda por aí que chego a ter vergonha de mim mesma. Engraçado como essa não é minha opinião quando estou a pratica-las.

- Deve ser bom voar por aí – ela deslizava delicadamente a ponto do dedo pela tábua de madeira – ter liberdade, conhecer o mundo. Sair desse lugarzinho.

Eu juro que eu queria muito mesmo chama-la para vir comigo no meu navio e nunca mais voltar! Mas eu não consegui coragem para dizer isso a ela! E eu não tinha um navio…

- É – foi o que consegui responder – O vento no rosto, o horizonte infinito – tomei coragem – Eu queria te levar em uma das minhas viagens – a voz me faltava no final da frase.

Carmensita virou o belo rosto para mim, fitava-me com os enorme olhos cor de mel, os finos e vermelhos lábios entreabertos. 

- Te conhecer melhor – disse pausadamente, enfeitiçada pelo olhar dela.

Uma explosão colorida no céu quebrou o feitiço. Fogos de artifício foram acesos e eram lançados do navio voador do Capitão Wig, vinte metros acima de nós, ancorado na taverna. Diversos deles cortavam a noite em trajetórias caóticas, explodindo em cores e sons. A luz deles ofuscava a das estrelas agora.

Em segundos, uma multidão veio a sacada observar o show dos fogos atirados do navio de Wig. Os olhos de Carmensita eram deles agora e não mais meus.

Um marujo escalava a corda da âncora na tentativa de subir ao navio. O responsável pela festança e dono do navio arrastou seu manto violeta até a sacada. Ele não entendia o que acontecia. De onde vieram os fogos ou quem os acendeu? Deixei a área externa e retornei ao salão, agora pouco frequentado.

- O que diz de minha proposta agora Micaela? – surgiu, além de meus sentidos, o homem que conversei mais cedo, no mesmo traje elegante.

- Tem o dom de surgir das sombras, senhor não-sei-o-nome.

- Pode me chamar de Scott Riddle.

- Escute, não estou num dia bom – ainda saía do transe de Carmensita – então por que não me procura daqui uns dois meses hein? – eu não queria ser rude com o homem.

- Não disponho do tempo, capitã – o homem levou a mão a um relógio de bolso. Aquilo era ouro? – Está sem navio, sem dinheiro, e está é a única oferta que tens. Preciso de sua resposta agora.

Aquilo já era demais. Quem esse merda pensava que era?

- Por que eu deveria ir pra onde quer que vá naquele estúpido navio que não voa? Eu posso ficar em Mirrorport o tempo que quiser, até me aparecer alguma proposta! Mirrorport é meu porto seguro.

Uma das paredes da Boca de Lobo explodiu com um tiro de canhão.

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