Já que eu não tinha nada melhor pra fazer de noite – nem o
que comer, nem onde dormir – fui averiguar se essa tal festa ia acontecer
mesmo. As ruas de Mirrorport essa hora da noite eram tomadas pela neblina que
subia do Canal da Mancha, escuras e convidativas a assaltos e estupros. Eu
mesma já fiz muito isso, mas resisti à tentação de repeti-las.
A taverna estava lotada de imbecis fedendo a sal, suor e
cerveja, em seus surrados trajes de marujos, cabelos e barbas desgrenhadas. Não
estivessem minhas botas bem afiveladas, elas recusariam a seguir caminho junto dos
meus pés, coladas no assoalho. Gaiteiros e músicos menos afinados queriam ter a
certeza que seriam ouvidos de Londres. Meretrizes baratas subiam as escadas
acompanhadas, e outras não tão baratas assim dançavam pouco vestidas na
multidão. Sobre uma grande mesa, javalis, peixes e aves assadas eram devorados
pelos festeiros. Barris de cerveja, vinho e rum rolavam pelo local, abastecendo
as canecas de todos.
Meu senso investigativo estava sempre desperto. Por isso,
após pegar algumas garrafas e pedaços de carne para análise, tratei de
descobrir quem o responsável por aquela festança.
Atrás do balcão, Billy Jack Joe, o taverneiro, colocava mais
um barril de cerveja a disposição de todos. Ele era muquirana, jamais
hospedaria uma festa. Nem que sua sogra morresse e lhe deixasse uma herança
milionária.
Mais adiante, bebendo ao balcão e conversando com os
bêbados, Conde Andrew em seu fraque preto, cartola e bengala. Impossível, mal
tinha dinheiro para sustentar a si próprio. Tanto que se tivesse não estaria
aqui.
Ao seu lado, Capitão Wig Gancho Torto, pirata dos ares. Acho
que vi um navio voador pirata ancorado acima da Boca de Lobo. Só podia ser ele.
Apesar de mau sucedido e azarado, era, dentre os presentes, o que tinha mais
chances de promover a festa.
- Newport! – Capitão Wig insistia nessa insanidade – Estou
lhe dizendo, Micaela, saqueei Newport!
- E descobriu, acidentalmente,
que havia um carregamento secreto de ouro do Banco da Inglaterra indo para a
França? Isso é impossível!
- Se fosse impossível não estaria celebrando essa festa,
estaria?
Por fora eu não acreditava em tal absurdo. Por dentro eu
gritava: por que isso não acontece comigo?
- Micaela – insistência saía daquela boca com poucos,
tortos, amarelos e corroídos dentes – Não sou o primeiro pirata a saquear
aquele porto. A pobre da cidade já sofreu com isso várias vezes. Eu apenas dei
sorte!
- Capitão Wig, a RAN tem fechado o cerco de uns anos pra cá.
Mirrorport tem cada vez menos piratas e cada vez mais dívidas não pagas.
Conhecidos do senhor mesmo já devem ter sido pegos e enforcados por McTravis ou
algum outro capitão. É impossível que eles tenham cometido tamanho erro em
deixar um carregamento de ouro sem escolta!
- Não vê? Essa foi a intenção deles! Deixaram seu escolta
para não chamar a atenção e passarem despercebidos!
Eu teria continuado a conversa, mas ela tinha que aparecer. Carmensita desfilava entre os homens em
seu vestido cor de sangue e bordados negros como se eles não existissem. O
decote exibia largamente os seios fartos. Pele branca, macia como o mais suave
dos tecidos. Cachos entre o dourado e o ruivo elegantemente arrumados caíam até
a metade das costas nuas. Seu olhar sedutor, cor de mel, cruzou com o meu,
deixou-me boquiaberta. Os olhos pintados de negro ficavam ainda maiores e mais
destacados. Narizinho pequeno, arrebitado. Lábios finos, vermelhos, insinuavam
um sorriso sensual. Imaginei o arome de chocolate exalando de seu corpo. Ela
deu-me as costas, suave como todos seus movimentos e foi em direção à sacada.
Como a garota era provocante. Não ligava que olhassem seus seios expostos, nem
com o olhar mais indiscreto e malicioso. Ela gostava. Parecia que fazia tudo
isso pra mim, pra me provocar, provocar meus pensamentos. Me deixava confusa,
incerta, nervosa. Não conseguia me aproximar dela. E para quê? Que tanto tinha aquela
menina que me enfeitiçava e em meus sonhos chamava-me com suas mãos sensuais?
Erámos tão diferentes, mesmo que eu nunca tivesse falado com ela, não mais que
olhares cruzados e presença nos mesmos ambientes. Ela vestia finos vestidos,
enquanto eu usava calças e camisas folgadas e um casaco azul grosso por cima de
tudo.
Eu teria dito ao Capitão Wig que discutir sobre o saque de
Newport não importava mais. Nem isso eu fiz. Reunia coragem para ir até a
sacada conversar com Carmensita. Eu
queria isso! Mas não tinha certeza sobre o que sentia, e ela era uma garota! E
eu também! Que mundo mais maluco esse! Ela acharia estranho e eu não saberia o
que dizer, eu nem sabia o que ia fazer lá! Não sabia por que estava indo atrás
dela! Argh! Eu queria martelar minha cabeça e acabar logo com aquilo!
Virei um gole de vinho na esperança de ajudar. Não estava
ajudando, mas me fez pensar que eu tinha mais coragem, então valeu a pena.
Avancei alguns passos na direção dela. Estava sozinha. Eu tinha que ir antes
que chegasse alguém. Talvez fosse melhor deixar tudo isso de lado e esquecer. É
o que eu sabia fazer de melhor e tive fazendo isso havia bastante tempo.
E veja o que se tornou. Que se dane, eu iria lá. Não importa
o que viesse eu me sentiria melhor depois, pelo menos.
Fui até a sacada. O frio me atingiu primeiro ao deixar o
calor da multidão e um lugar fechado. Minhas mãos agarraram firmemente o
cercado de madeira que nos impedia de cair contra as rochas, quinze metros
abaixo de nós, atingidas violentamente pelas ondas do mar.
Estávamos apenas Carmensita
e eu, longe da presença, mas não dos olhares, dos outros. O vento me atingiu
pela lateral e arrancou meu chapéu da cabeça, perdendo-se ao mar. Tomada de
surpresa, sem saber o que fazer, fiquei rígida ao vê-lo voar e não consegui
agir naturalmente. Carmensita
seguiu-o com um movimento suave de cabeça e virou-se para mim:
- Seu chapéu! – sua voz é melodiosa, envolvente. Fiquei
olhando para seus lábios entreabertos, dentes brancos perfeitos atrás deles –
Micaela, não é?
- Sim – gaguejei – meu chapéu – gaguejei mais um pouco – eu…
é – só pra fazer mais um pouco de merda.
Carmensita sorriu.
Seus olhos brilhavam fixamente nos meus. Ela era um pouco mais baixa do que eu,
e eu não era alta. Ela virou-se para o mar, totalmente negro essa hora da
noite.
- Está uma noite linda, não é? – me disse. O céu estava
repleto de estrelas e poucas nuvens nos observavam.
- Sabe – minhas mãos se tornaram verdadeiras quedas d’água –
eu já observo, quero dizer, já vi você por aí há bastante tempo – faltava-me ar
para dizer essas palavras. Podia sentir o coração saltando no peito.
- Eu também tenho te observado há algum tempo. Conheço você
de vista quando aparece aqui, em Mirrorport.
Pai eterno! Será que ela pensa de mim as mesmas coisas que
eu penso dela? E o que será que ela me viu fazer? Eu faço tanta merda por aí
que chego a ter vergonha de mim mesma. Engraçado como essa não é minha opinião
quando estou a pratica-las.
- Deve ser bom voar por aí – ela deslizava delicadamente a
ponto do dedo pela tábua de madeira – ter liberdade, conhecer o mundo. Sair
desse lugarzinho.
Eu juro que eu queria muito mesmo chama-la para vir comigo
no meu navio e nunca mais voltar! Mas eu não consegui coragem para dizer isso a
ela! E eu não tinha um navio…
- É – foi o que consegui responder – O vento no rosto, o
horizonte infinito – tomei coragem – Eu queria te levar em uma das minhas
viagens – a voz me faltava no final da frase.
Carmensita virou o
belo rosto para mim, fitava-me com os enorme olhos cor de mel, os finos e
vermelhos lábios entreabertos.
- Te conhecer melhor – disse pausadamente, enfeitiçada pelo
olhar dela.
Uma explosão colorida no céu quebrou o feitiço. Fogos de
artifício foram acesos e eram lançados do navio voador do Capitão Wig, vinte
metros acima de nós, ancorado na taverna. Diversos deles cortavam a noite em
trajetórias caóticas, explodindo em cores e sons. A luz deles ofuscava a das
estrelas agora.
Em segundos, uma multidão veio a sacada observar o show dos
fogos atirados do navio de Wig. Os olhos de Carmensita
eram deles agora e não mais meus.
Um marujo escalava a corda da âncora na tentativa de subir
ao navio. O responsável pela festança e dono do navio arrastou seu manto
violeta até a sacada. Ele não entendia o que acontecia. De onde vieram os fogos
ou quem os acendeu? Deixei a área externa e retornei ao salão, agora pouco
frequentado.
- O que diz de minha proposta agora Micaela? – surgiu, além
de meus sentidos, o homem que conversei mais cedo, no mesmo traje elegante.
- Tem o dom de surgir das sombras, senhor não-sei-o-nome.
- Pode me chamar de Scott Riddle.
- Escute, não estou num dia bom – ainda saía do transe de Carmensita – então por que não me
procura daqui uns dois meses hein? – eu não queria ser rude com o homem.
- Não disponho do tempo, capitã – o homem levou a mão a um
relógio de bolso. Aquilo era ouro? – Está sem navio, sem dinheiro, e está é a
única oferta que tens. Preciso de sua resposta agora.
Aquilo já era demais. Quem esse merda pensava que era?
- Por que eu deveria ir pra onde quer que vá naquele
estúpido navio que não voa? Eu posso ficar em Mirrorport o tempo que quiser,
até me aparecer alguma proposta! Mirrorport é meu porto seguro.
Uma das paredes da Boca de Lobo explodiu com um tiro de
canhão.
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